Sistema prisional reativo não permite ressocialização
Com um total de 5.905 presos e 3.393.369 habitantes (uma taxa de
174,02 presos para cada 100 mil habitantes), o déficit nos presídios e
penitenciárias do estado é de 1.964 vagas.
Na penitenciária de Tefé (antigo prédio residencial improvisado como prisão),
as celas não possuem chuveiro e os presos se banham com a água que corre de um
cano a um tonel.
Na Cadeia Pública de Vidal Pessoa, localizada em Manaus, há sete homens
para cada vaga na ala masculina e o número de detentas é quase quatro vezes
superior à capacidade da ala feminina.
Este foi o retrato que o último Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
realizado entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011. Por meio de inspeções
pessoais feitas pelos próprios juízes, é possível visualizar a situação do
estado amazonense. Clique aqui para ler o relatório do mutirão.
Nos estabelecimentos, além de muito calor, superlotação e condições precárias
de vida, há ainda uma agravante: 60% dos presos do estado são
provisórios, ou seja, ainda não foram condenados definitivamente. Eles
aguardam seus julgamentos encarcerados, podendo ainda ser absolvidos.
Outra barbaridade encontrada foi na cidade de Parintins, onde um
adolescente de 17 anos dividia cela com presos adultos. No mesmo presídio,
as grades das celas estão soltas, as paredes balançam, há diversas infiltrações
e um grave risco de desmoronamento da laje sobre os detentos.
Na Casa do Albergado, situada na capital do estado, tolera-se o uso de
drogas e álcool pelos detentos, em prol da “manutenção da paz” (frise-se
que 2.407, ou 41%, dos detentos respondem por tráfico de enropecentes).
Já no Complexo Penitenciário Anísio Jobim a segurança é tão precária que foram
registradas 554 fugas em 2009.
Assim, além de insalubridade, insegurança e desumanidade, o sistema
carcerário amazonense padece de verdadeira ilegalidade, além de colocar
em risco a vida e a integridade de muitos seus detentos, os quais, considerada a
totalidade, em sua maioria, sequer foram condenados.
A gravidade assim como a desumanidade institucional que aflige e denigre
nosso sistema penitenciário fica cada vez mais evidente em cada mutirão
realizado pelo CNJ. A essas denúncias dos magistrados inspetores devemos agregar
as dos próprios presos, que diariamente não só reclamam dos maus-tratos senão
também da insegurança em que vivem, típica de um Estado de Exceção. O pior é que
tudo isso não é nada excepcional. Virou a regra, no sistema prisional
brasileiro, que se caracteriza pela crueldade (daí dizer-se que o preso, no
nosso país, não vai para o cárcere para cumprir seu castigo imposto em uma
sentença judicial, mas sim para ser castigado, humilhado e degradado). O sistema
de crueldade prisional é inequivocamente antagônico em relação ao Estado de
Direito democrático desenhado pela Constituição Federal de 1988, assim como em
relação ao nível de civilização pregado pelos tratados de direitos humanos. A
degradação e a barbárie do nosso sistema prisional nos colocam, em termos
mundiais, dentre os países “jushumanitariamente” mais atrasados.
No sistema de crueldade prisional não vigoram os direitos e garantias
contemplados no Estado de Direito vigente. Como território das ilegalidades
inerentes ao Estado de Exceção, é um sistema governado pela tortura
sistematizada, pelas condições absolutamente desumanas assim como pela
corrupção, que são notas típicas dos campos de concentração, que estão se
transformando em verdadeiros campos de extermínio, sem nenhum tipo de controle
judicial, seja em decorrência do ineficientismo da máquina judiciária, seja em
razão da conivência (explícita ou implícita) desta máquina com a violência
institucionalidade nos presídios. Esse cenário de crueldade e desumanidade não
chegaria aos extremos que chegou sem a cumplicidade, ademais, dos demais poderes
instituídos (sobretudo o político), que vivem embalados (inebriados) pelas
demandas hiperpunitivistas populistas e midiáticas, denotando-se o que Michel
Foucault chamava de “consenso social inarticulado”.
Em alguns centros penitenciários o nível de degradação chega a tal ponto que
as próprias autoridades (e seus agentes) fecham os olhos para algumas
ilegalidades emanadas dos próprios presos (formando-se territórios de drogas
livres, por exemplo). Essa é uma forma de encobrir as ilegalidades
institucionais, destacando-se a violência e o extermínio, que acabam servindo
aberrantemente de “propaganda” para os governantes de mão dura (que assim
procedem em razão do amplo apoio do populismo punitivo).
Quando bem analisada, verifica-se que essa política prisional rigorosa e
degradante, vexatória e inconstitucional, que só existe em razão da ampla
conivência das instituições públicas encarregadas da segurança, nada mais
representa que a penúltima linha da política criminal populista hoje imperante
(a última etapa é de responsabilidade da própria sociedade, que não aceita o
egresso). O sistema de crueldade prisional nada mais retrata que a outra cara da
mesma moeda das políticas de segurança reinantes em toda a América Latina,
fundadas na demagogia punitivista e na utilização massiva e abusiva da prisão
preventiva.
Trata-se de um modelo de política criminal marcado pela exclusividade “penal”
e tendencialmente exterminador, que deita suas raízes em substratos doutrinários
e ideológicos ancorados no neoconservadorismo dos anos 1970 e 1980, que é filho
do capitalismo ultraliberal reinante, que tem como “inimigo” um determinado
protótipo de “perigoso”: jovem (de 15 a 29 anos), majoritariamente negro (pardo
ou preto), pouco escolarizado, socialmente desamparado, autor de crimes
tradicionais, morador de bairros pobres, geralmente desocupado, repleto de
necessidades, com baixíssimo capital social, econômico e cultural e que teve
carências alimentares na infância.
Quem é esse prisionável? Esse é o “outro” (da criminologia do “outro”), que
não conta com os direitos do Estado de Direito, sendo altamente vulnerável em
razão precisamente da sua periculosidade de autor ou de classe, e componente, em
virtude de se constituir um corpo sem alma (sem instrução, sem capital cultural,
sem habilidades cognitivas), do grupo dos torturáveis, prisionáveis e mortáveis.
O sistema da crueldade prisional joga suas forças contra um determinado grupo
social (excluídos, marginalizados etc.), é reativo e, justamente por isso, não
conta com programas de prevenção ou mesmo de ressocialização.
*Colaborou Mariana Cury Bunduky, advogada e pesquisadora do Instituto de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.
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