Quanto mais tenho a certeza de que juízes decidem
politicamente, mais me preocupo com isso. Se esse é um problema (há quem duvide
disso), devemos enfrentá-lo com seriedade. Entretanto, no Brasil,
permanentemente, confundimos aquilo que é apenas a expressão do que desejamos
(no caso, que o magistrado decida com base na lei) com aquilo que de fato
acontece (no caso, que o magistrado é humano e, não raramente, decide com base
em fatores extralegais). É certo que se deva fazer algo sobre isso, pois, como
tenho insistido neste espaço, juízes são pagos para aplicar o Direito
democraticamente criado pelos representantes do povo, e não as suas
preferências pessoais. Mas, tomar a ilusão de nossos sonhos pela realidade dos
fatos, historicamente, tem se revelado o maior mal de que padecem aqueles que,
guiados pelas melhores intenções, se lançam à tarefa de transformar o mundo. Na
alegre e inteligente conclusão de Woody Allen, a realidade pode
ser dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom filé.
Para ser justo, nem sempre se pode atribuir ao
comportamento dos magistrados o seu eventual desvio do que estritamente dispõe
a regra de direito. Com efeito, como há muito demonstrou John Searle, em
qualquer discurso (ato de fala), também nos textos legais, podemos encontrar
uma distância entre o discurso direto e o discurso indireto. Dizendo de forma
mais simples, aliás muito simplificada, também no direito não podemos recusar a
possibilidade de um texto afirmar mais do que aquilo que expressa a sua
literalidade[1]. Nos
atos de fala indiretos, o emissor expressa algo, mas querendo dizer outra
coisa. No exemplo eloqüente de J. Searle, quando alguém diz “o senhor está
pisando no meu pé”, na maior parte das vezes, o indivíduo não quer apenas fazer
uma assertiva do que está acontecendo (discurso direto), mas quer dizer
principalmente outra coisa (discurso indireto). No caso, o emissor não quer apenas
dizer “você está pisando no meu pé”(ato de fala direto), mas,
principalmente, quer dizer algo não diretamente dito: saía de cima do meu
pé, por favor (ato de fala indireto)[2].
Assim, muitas vezes, o magistrado tangencia ou não
aplica, em sentido estrito, o que a lei dispõe textualmente por problemas
estruturais do próprio texto ou do sistema legal que tem de aplicar (motivos
alheios à sua própria vontade), como é o caso da existência de lacunas, ou
da existência de contradições, ou ainda da ausência (inexistência) de
univocidade do texto ou, pior, do sistema legal (como são os atos de fala
indiretos). Entretanto, se esses problemas existem, é fato que existem também
problemas que podem ser imputados não ao texto legal, mas à maneira muito
própria dos magistrados se comportarem. Assim, o artigo de hoje volta-se à
discussão daquilo que podemos designar como “o modo próprio de pensar e de agir
dos magistrados”.
Inteiramente a propósito, em livro inevitável para
aqueles que se dedicam a refletir sobre a realidade da atuação dos magistrados
num Estado constitucional, Richard Posner, ao questionar-se sobre “como os
juízes pensam” (e esse é o exato título da obra: How judges think), chega
à conclusão de que os juízes, especialmente os que atuam em instâncias
recursais (appellate judges), freqüentemente atuam com liberdade e poder
discricionário (discretion), distanciando-se do direito posto e revelando-se
verdadeiros “legisladores ocasionais” (occasional legislators)[3].
Na verdade, a leitura (muito agradável) do livro
amarra o leitor, do início ao fim, a uma aberta ironia: a de que os juízes
são permanentemente “legisladores ocasionais”. Segundo o autor, ele
mesmo um magistrado com assento em Tribunal Federal como eu, não há dúvida de
que juízes decidem politicamente, mas não “politicamente” de modo partidário, e
sim “politicamente” ao modo de quem, amiúde, aplica o direito para satisfazer,
em boa maior parte das vezes inconscientemente, sua orientação ideológica e
seus próprios valores e preconceitos (preconceptions)[4].
Na verdade, o livro, ao buscar explicar o
comportamento do magistrado quando decide os casos dispostos à sua consideração,
acaba reservando uma surpresa a cada página. Ainda que não concorde de forma
integral com as suas conclusões (o autor, no meu sentir e segundo a visão de
alguns críticos, tem momentos de inaceitável reducionismo teórico), o fato é
que, no geral, o livro nos oferece uma visão bastante convincente do que
realmente pensam e fazem os juízes. De qualquer forma, como investigação não
existente em nosso País, o livro, de autoria dos maiores teóricos e magistrados
da atualidade, já seria obrigatório aos brasileiros ainda que na condição de
necessária advertência.
Em primeiro lugar, o que constitui um verdadeiro
truísmo nas considerações do autor, é indiscutível que juízes decidem
politicamente (para além do rule of law). As razões para que o
magistrado assim proceda têm múltiplos fatores e motivações, sobre os quais
Posner, de forma didática, sugere nove teorias explicativas: (1) quanto à
postura ou atitude pessoal do magistrado (attitudinal), (2) de fundo
estratégico estratégia, (3) de razões sociológicas, (4) de causas psicológicas,
(5) de fundo econômico, (6) de estrutura organizacional, (7) razões
pragmáticas, (8) de motivação fenomenológica e, claro, (9) também em alguma
medida em razão de algum legalismo.
Sob o rótulo de teoria comportamental ou
quanto às atitudes do juiz (attitudinal), Posner busca explicar o fato de que
juízes tendem a decidir politicamente, em detrimento do direito, em razão de
suas preferências pessoais, ou seja, eles trariam para o interior dos casos que
têm que julgar as suaspreferências políticas[5].
Bem próxima à teoria comportamental, estaria
a teoria estratégica (strategic theory), que explicaria o
comportamento dos magistrados pelo fato de eles, ao decidirem ou votarem num
tribunal, preferirem aquelas decisões que mais se ajustam aos seus objetivos.
Segundo essa teoria, estrategicamente, mas de forma contraditória, mesmo um
magistrado mais legalista ou conservador, por exemplo, pode perfeitamente ser
levado a votar afastando-se do que dele seria esperado, tudo para atender aos
seus valores, objetivos ou visão de mundo[6].
A teoria sociológica é uma extensão ou
aplicação da teoria do comportamento combinada com a teoria estratégica. Em
síntese, ela busca explicar o comportamento dos juízes com foco na dinâmica de
pequenos grupos (muito comum a tribunais, como as turmas e as seções),
retirando-se daí a conclusão de que a composição – especialmente, ideológica -
dos órgãos dos tribunais determinará, em grande medida, o resultado de seus
julgamentos.
Assim, nos exemplos do autor, colhidos não só de
sua própria experiência, mas da prática de outros tribunais, uma turma composta
de juízes indicados por
presidentes republicanos e democratas irá, de regra,
decidir de forma diversa de uma turma composta completamente por juízes indicados,
por exemplo, apenas por presidentes republicanos (como se sabe, nos Estados
Unidos, juízes federais de todos os níveis são nomeados ou indicados pelos
Presidentes da República). Da mesma forma, um caso sobre discriminação sexual,
muito provavelmente, será decidido de forma diferente, conforme essa decisão
seja tomada por um órgão do tribunal que tenha na sua composição uma mulher, ou
seja apenas formado por homens[7].
Muitas são as tentativas de explicar essas curiosas
conseqüências que tem a diversidade na composição dos tribunais para o
resultado de suas decisões. Um das mais conhecidas refere a conclusão de que um
órgão com uma composição diversa de outro órgão do tribunal tende a decidir de
forma diferente pelo simples fato de que, no órgão (turma ou seção, por
exemplo) que tenha assento um magistrado com perfil ideológico diferente dos
demais, serão trazidos pontos de vista que teriam escapado àqueles magistrados
que não têm o mesmo perfil ideológico, ou formação.
Contudo, a mais surpreendente explicação é sugerida
pelo próprio Posner, ao afirmar que o resultado diverso em razão da composição
diferenciada de um órgão de um tribunal pode dar-se pelo fenômeno que ele
designa de “aversão ao dissenso”. Em breves palavras: havendo discordância
entre dois magistrados, um deles (às vezes ambos), especialmente em casos que
dificilmente terão importância como precedente jurisprudencial, pode abrir mão
do seu ponto de vista, do que eventualmente lhe parecia o mais correto, para
acolher o voto de um terceiro julgador dissidente, com a esperança de,
consciente ou inconscientemente (e aqui a explicação surpreendente), no futuro,
obter, em casos que para ele se revelem de forte significado, o mesmo
tratamento. Em síntese, como explica Posner, como o julgamento em colegiado é
uma empresa coletiva, os juízes que compõem órgãos de tribunais têm verdadeira
ojeriza ao dissenso[8].
A teoria sociológica deve ser
complementada, por um lado, pela teoria psicológica e, por outro,
pelateoria econômica.
A teoria psicológica centra a sua atenção
nos influxos inconscientes que conformam o comportamento humano. O afazer
judicial, como sabemos, vai se transformando cada vez mais num espaço de
incerteza e imprevisibilidade. No Brasil se aproxima, perigosamente, do paroxismo.
Em síntese, em decisões judiciais não seria correto desconsiderar eventuais
paixões e outros aspectos inconscientes que, inelutavelmente, conformam todo e
qualquer afazer humano.
Já a teoria econômica, de forma quase oposta à
teoria psicológica, toma o magistrado como um ser racional, interessado em
maximizar – para si mesmo – a utilidade de seu trabalho. Entre os elementos
que, racionalmente, terão importância nas decisões dos magistrados - como
qualquer ser humano que age racionalmente e do ponto de vista econômico - se
encontraria a sua preocupação em maximizar o seu tempo de trabalho de ordem a
ter melhor eficácia no que tange aos seguintes elementos: seu próprio laser, o
poder, a sua remuneração (money income), prestígio e reputação, auto-estima,
estimulo para o trabalho e outras satisfações que todas as pessoas mantêm com o
seu trabalho[9].
Por exemplo, na ilustrada e desapaixonada visão de
R. Posner, a preocupação do magistrado com seu próprio tempo livre para o laser
pode explicar por que alguns magistrados dão especial ênfase em doutrinas
jurídicas que levam a extinção dos casos sem necessidade de julgamento (como
seria difícil trazer para a nossa realidade os exemplos por ele referidos, além
da renúncia - waiver, poderíamos dizer que, no Brasil, deveríamos pensar
na especial preocupação judicial com possibilidade de um caso se encerrar com
juízos de decadência, prescrição ou sanções que resultem em perda de direito).
Além disso, Posner lembra ainda de casos que
parecem freqüentes na experiência de seu País, mas não são nossos
desconhecidos, em que os magistrados, mais preocupados com seu próprio tempo e
com a organização de seu trabalho, são levados a transferir (delegar) em
demasia para os seus assessores (clerks) as suas atribuições, ou ainda a
situação do magistrado que, racionalmente, num juízo de custo/benefício, pode
ser levado a forçar as partes para a efetivação de acordos que evitem a
necessidade de um julgamento final para a causa (o que é bastante diferente da
elogiável buscaconsensual de conciliação a que se devem dedicar os
tribunais)[10].
A teoria organizacional terá em vista os
fatores que explicam a decisão do magistrado em consideração à estrutura e à
organização da qual ele faz parte. Assim, para dar um exemplo, não obstante o
magistrado tenha como garantia a sua independência, cria-se na organização
judicial uma estrutura baseada no precedente com vistas a evitar que
o juiz, com sua independência, se afaste em demasia da organização da qual ele
faz parte. Cria-se um custo para que o magistrado tangencie ou confronte
os precedentes das cortes superiores (por exemplo, explicará o próprio Posner,
conquanto o juiz possa desconsiderar os precedentes das cortes de apelação, se
ele assim proceder, haverá um custo pessoal, por exemplo, quando essa corte for
considerar a eventual promoção do magistrado)[11].
Por sua vez, segundo o pragmatismo (teoria
pragmática), Posner afirma que, para compreendermos o resultado das decisões
judiciais, teremos que considerar o fato de que juízes, muitas vezes, estão
mais atentos, segundo um raciocínio utilitário, às conseqüências de sua decisão
do que propriamente a um puro raciocínio jurídico que vincularia as conclusões de
seu pensamento às premissas existentes e tomadas no caso concreto[12].
A teoria fenomenológica, por sua vez, é uma
ponte da teoria pragmática para teoria legalista. Ela estaria atenta à imagem
que o magistrado constrói de si mesmo. Com isso Posner é da opinião de
que o magistrado pragmático será mais honesto do que o magistrado que
se afirma legalista. O pragmático, segundo Posner, admite que toma
em consideração outros aspectos (como as conseqüências de suas decisões)
e não apenas a pura expressão da lei, enquanto o legalista se enganaria ao
acreditar que apenas aplica a lei ao caso concreto (the rule of law)[13].
O livro, em resumo, não obstante seus momentos
criticáveis, como é uma certa prevalência do modelo pragmático de magistrado,
em detrimento do que ele designa como legalista (uma coisa é conceber que o
magistrado aja em conformidade com seus interesses e em detrimento da lei,
outra é achar que isso é correto e inevitável), é uma obra capital para quem
busca compreender o comportamento dos magistrados.
Eu concluo a coluna de hoje com as palavras
iniciais de Richard Posner em seu maravilhoso livro[14]:
“Ivan Karamazov disse que se Deus não existe (então) tudo é permitido, e os
juristas tradicionais, igualmente, dizem que se o legalismo (alguma forma de
vinculação dos juízes ao direito estrito[15])
não existe (então) tudo é permitido aos juízes – Muito cuidado! Legalismo não
existe, e nem tudo é permitido.” Contudo, alerta o autor, como o âmbito de
vinculação do juiz ao Direito (que ele chama de legalismo) encolhe cada vez
mais, chegando ao estado que vemos hoje, limitado aos casos de rotina, cresce
cada vez mais (eu diria, de forma preocupante) o espaço do que é permitido aos
juízes.
[1] John R.
Searle. Speech acts: an essay in the philosophy of language. Cambridge University Press, 1999. 203
p. Mais especificamente, John R. Searle. Expressão e Significado: estudo
da teoria dos atos de fala. SP: Martins Fontes, 2002, 293 p.
[2] John R. Searle. Expressão e Significado: estudo da teoria dos atos
de fala. SP: Martins Fontes, 2002, introdução e p. 47 e seguintes. Ver
também John R. Searle. Speech acts: an essay in the philosophy of
language. Cambridge University Press, 1999., p. 22 e seguintes.
[3] Richard
Posner. How judges think. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard
University Press, 2008, p. 5 e, especialmente, 78 e seguintes.
[4] Richard
Posner. How judges think. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard
University Press, 2008, p. 369.
Fonte: http://brunocazevedo.blogspot.com.br/
0 comentários:
Postar um comentário