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Cotas raciais em concursos para o Judiciário?

Posted by Chrystiano Angelo On sexta-feira, 15 de junho de 2012 0 comentários

Cotas raciais em concursos para o Judiciário?


Recentemente, o Ministro Carlos Ayres Britto, em entrevistaao CONJUR, afirmou que as políticas afirmativas podem atingir também postos de trabalho. E falou em promover a “igualdade aproximativa” entre negros e brancos. Pouco depois, vi notícia dando conta de que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – deliberará, ainda este mês, acerca de um pedido de cotas raciais nos concursos para o Judiciário.
Há vozes contrárias a qualquer tipo de cota. A alegação principal é de, acreditem, racismo. Os principais argumentos estariam em dois dispositivos da Constituição Federal. Eis o que dizem:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, COR ou estado civil;
“Art. 39, § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.
O argumento contra se fundamentaria na isonomia. Com as cotas,  estar-se-ia criando favorecimento indevido. Se estimularia a preguiça dos que não se afeiçoam aos estudos e desestimularia a salutar livre concorrência. Promover-se-ia, assim, um paternalismo indesejável e prejudicial ao progresso da sociedade. E há os que ataquem a viabilidade das medidas, sob o argumento de que não há como definir o público-alvo; afinal, quando se é contra, qualquer desculpa serve.
Primeiramente, acho melhor traçar o panorama atual para, depois, buscar as razões dessa desigualdade e, tão somente, concluir com meu entendimento sobre a questão. Vou limitar a abordagem aos afrodescendentes, sob pena de escrever um texto inadequado para uma postagem de blog. Mas adianto que, em relação aos índios, não há muitas diferenças em termos de exploração e opressão.
Fazendo uma reflexão sobre os afrodescendentes no mercado de trabalho e na vida social, uma constatação local foi fácil: na magistratura do Rio Grande do Norte, por exemplo, em um universo de cerca de duzentos magistrados, identifico como afrodescendentes apenas seis. Isso equivale a três por cento, apesar dos afrodescendentes (os pretos e os mulatos – a maior parcela dos pardos) representarem, seguramente, quase metade da população brasileira. Dentro da classe política, a sub-representação também é gritante. Estudos recentes dão conta de que apenas 8% dos 513 deputados federais são afrodescendentes. O salário médio dos negros no Brasil é praticamente a metade do recebido pelos brancos; os negros são 70% dos pobres e 70% dos indigentes do brasil (vide aqui). E na USP, a mais prestigiada Universidade do país, nos cursos de ponta, os negros representam apenas, 0,9%. Isso mesmo. Menos de um por cento. Como disse Bob Fernandes, “não faltam números. Mas números são até desnecessários. Basta olhar em volta; nas boas escolas privadas, nos ótimos shoppings, nos belos restaurantes… na Mídia”. Não dá para mantermos mais essa tremenda e histórica desigualdade. Aproveito para fazer uma breve viagem no tempo.
Ao contrário do que o senso comum imagina, para cá veio, acorrentada, a elite pensante de muitos povos africanos. E atravessaram o Atlântico, humilhados e famintos, nos porões infectados de ratos e pulgas, alguns grupos, incluindo os malês, que sabiam ler e escrever em árabe, fato inusitado em um Brasil em que a maioria da população, incluindo a elite, era analfabeta. Nações inteiras aqui aportaram tão somente pelo fato de terem sido vencidas em batalhas. Era costume da época que o povo vencedor sobrepujasse e escravizasse os vencidos, da mesma forma com que narra a Bíblia sobre o povo Judeu no antigo Egito. Mas bastaram algumas poucas gerações nascidas no cativeiro para que o mesmo povo que um dia conheceu a álgebra e a astronomia involuísse para uma condição pré-histórica, afinal de contas, era proibida a educação formal do escravo.
Com a abolição da escravatura negra (cuja tardança nos fez assumir o desonroso posto de último país do mundo a fazê-la), sabem qual foi a única “política pública” implementada pouco mais de um ano depois? Um novo Código Criminal que dedicou o Capítulo XII à punição dos “Mendigos e Ébrios” (e nem preciso dizer que os negros “libertados” saíram das senzalas, literalmente, com uma mão na frente e outra atrás) e o XIII, aos “Vadios e Capoeiras”, punindo (art. 402) quem praticasse a conduta de “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”. Os negros continuaram escravos da sua condição pré-histórica. Não sabiam exercer qualquer arte ou ofício além do trabalho desumano e braçal que aprenderam à força, sob o chicote dos capitães-do-mato.
A imigração europeia em massa seguiu um caminho bem diferente. Com o fim da escravidão, o Brasil se tornou um país de extremos. De um lado, o baronato das usinas de cana-de-açúcar e os grandes cafeicultores; do outro, a massa pré-histórica e faminta de ex-escravos, desprovidos de recursos de qualquer natureza, sem terra, sem cidadania, sem dignidade. No meio, uma escassa classe média de pequenos comerciantes e dos poucos servidores públicos. O plano do governo era, por um lado, fomentar, através da imigração europeia, a construção de uma classe média relevante. Oportuna a imigração em razão da crise na Europa. Ademais, a mão de obra imigrante era qualificada, com costumes e religiosidade semelhantes à da antiga matriz. E havia a necessidade de povoar a região Sul do país, sempre ameaçada de ocupação pelas nações vizinhas.
Artesãos e agricultores europeus aportaram em nossas terras, fugindo da fome provocada pela revolução industrial. A política governamental foi a da distribuição de terras e deveriam vir com as famílias, para promover a eugenia, a difusão da etnia branca. Cabe acrescentar que aos negros e índios era vedada a distribuição de terras. Assim, o mesmo escravo que aqui nasceu e que sofreu no pelourinho, sequer tinha o direito a um pedaço de chão. Já o branco estrangeiro que imigrava tinha a política governamental de incentivo agrário a seu favor. O darwinismo social e a eugenia racial se efetivavam, com o fim de “branquear a população”.
Assim, cara pálida, saiba que a representatividade deficiente do afrodescendente na sociedade brasileira não se dá por culpa dele, muito menos por preguiça ou incapacidade. Trata-se de uma condição de opressão histórica que os afeta hoje como reflexo do passado. Ou você já parou para pensar que há menos negros nas universidades porque eles frequentam menos escolas privadas porque seus pais também já são legatários de uma triste herança de desigualdade? E que isso é um círculo vicioso que não terá fim sem ações afirmativas?
Trata-se de uma violência sistêmica, que não é compreendida facilmente porque já foi introjetada em nossa normalidade. Termina sendo vista como algo corriqueiro, naturalizado no cerne das relações sociais. Essa violência é ideológica, passando ao largo da percepção dos que as sofrem e, muitas vezes, também dos que as exercem. Caracteriza-se pela fabricação, através do discurso, de falsas crenças que induzem o indivíduo a acreditar, a consentir e a se comportar de acordo com os padrões desejados pelo estamento. E imersos nessa violência que atua como ideologia, até mesmo os submetidos a ela começam a crer que se tratam de fatos naturais ou inevitáveis, etapas de um processo civilizatório evolutivo ou constitutivo do mundo.
E assim: a) as abissais desigualdades econômicas e sociais do Brasil são “naturais”; b) o mercado dá iguais oportunidades a brancos e negros e que não temos que responder por fatos ocorridos no passado, porque os negros se encontram em tais situações por “culpa própria”, “inaptidão” ou “preguiça” (ou mesmo inferioridade racial, acreditem, pois ainda há quem, em pequenos círculos, pense assim). Dessa foram, não se atenta para o fato de que o déficit de representatividade econômica, social e política dos afrodescendentes decorre de práticas que, por inúmeras gerações, os discriminaram negativamente. E não existe o explorado sem o explorador.
Os tempos exigem um olhar com alteridade, partindo de lá, além das nossas fronteiras individualistas e de conveniência, que somente uma viagem ao encontro do outro pode permitir. E quem sabe, reconhecendo o outro, possamos nos conhecer melhor, estranhando e evitando as posturas de apartheid.
Por fim, respondendo à objeção de pretensa violação de princípios constitucionais que vedariam a existência de cotas, trata-se  de argumentação sem fundamento normativo.
Cotas não são critérios para admissão. Não se estará restringindo a admissão a afrodescendentes. Pelo contrário, estar-se-á permitindo que haja uma representatividade social compatível com o contingente que representa na população brasileira. Isso se chama isonomia. É o mínimo que podemos fazer, ainda que com tanto atraso, para promover esse resgate histórico. E não será nenhuma novidade uma possível regulamentação afirmativa por parte do CNJ. Cotas em concursos públicos já existem, atualmente, para portadores de necessidades especiais.
O que temos hoje, materialmente, é “cotas” para brancos, ainda que sub-repticiamente impostas. Ou, talvez, até, “critérios discriminatórios” que se exercem e se depuram nas práticas sociais mais comuns e diuturnas. Apenas não existem na ordem do discurso. Elas se reafirmam nas listas de vestibular e de aprovação em concursos públicos. Ou todas as estatísticas mentem?
O Judiciário bem que poderia dar o exemplo de como pormos fim a esse violento e secular círculo vicioso. E me pergunto agora: quantos dos 15 conselheiros do CNJ, que decidirão essa questão, são afrodescendentes? Seria um bom começo para uma reflexão do próprio colegiado sobre o tema.
Minha última palavra é sobre a foto. Para quem não me conheça e possa imaginar que argumentei em causa própria, o menininho loiro sou eu, aos três anos.


*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

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