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Prisão, flagrante esperado e serendipidade – da teoria à processualística criminal

Posted by Chrystiano Angelo On quinta-feira, 15 de março de 2012 0 comentários

Prisão, flagrante esperado e serendipidade – da teoria à processualística criminal


Palavras-chave: Crime de concussão – flagrante esperado – encontro fortuito de provas – substância entorpecente – serendipidade.
Um caso de notória repercussão chamou a atenção dos criminalistas na região metropolitana de Cuiabá/MT. Trata-se da prisão de um policial civil acusado do crime de concussão (art.316 do Código Penal, vulgo “extorsão praticada pelo funcionário público”) e tráfico de drogas. Polícia prendendo “polícia” com flagrante esperado e encontro fortuito de provas
Segundo o Grupo de Ação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco), o policial procurou uma pessoa que estava com a prisão preventiva decretada por tráfico de drogas e pediu R$ 10 mil para que ela não fosse presa. A traficante, então, procurou o Gaeco – órgão ligado ao Ministério Público Estadual (MPE) – que, por sua vez, esperou a consumação do crime de concussão para dar o flagrante, haja vista que segundo o “parquet” era necessário uma prova para dar materialidade ao delito.
Assim, logo após ter recebido indevidamente a quantia prometida pela traficante, foi efetuada a prisão do policial civil em clara configuração da hipótese prevista no art. 302, inciso II, do Código de Processo Penal, em flagrante próprio.
A primeira análise a ser feita é que o crime de concussão independe de a exigência ser “justa”, isto é, um criminoso pode tranquilamente ser sujeito passivo do delito, o essencial aqui é a inequívoca intenção do autor de obter vantagem indevida aproveitando-se da função. O crime, em última análise, é exigir vantagem indevida propter officium.
Em suma, ao agente público não se permite colher vantagens em virtude do exercício de suas atividades, pois é serviçal do interesse público. A lei concede-lhe remuneração ou subsídio, conforme o caso, para fazer atuar, concretamente, a lei. Desse modo, mesmo para a prática de ato administrativo lícito, não se pode exigir do administrado qualquer vantagem ou acréscimo pessoal.
Sob outro enfoque, a concussão é um crime formal, isto é, de consumação antecipada, de resultado cortado ou, como se diz, de “tendência interna transcendente”. Sendo assim, sua consumação independe da obtenção da vantagem – que seria mero exaurimento do crime, basta que o funcionário público tenha exigido do particular indevidamente.
Pois bem, configurado o crime, resta destacar a atuação dos policiais na prisão do policial em nítido e válido flagrante esperado. Processualmente, não há que se confundir flagrante preparado com esperado, em que a polícia tão-somente espera a prática da infração, sem que haja instigação e tampouco a preparação do ato, mas apenas o exercício de vigilância na conduta do agente criminoso. Na situação aventada, o Gaeco, inclusive, retardou o cumprimento de um mandado de prisão em aberto para efetuar um flagrante da suposta concussão.
Não houve, no caso, o chamado flagrante provocado (ou “preparado”), o qual não é admitido pelo Supremo Tribunal Federal sendo aplicável na hipótese a Súmula 145 do STF, que dispõe: “não há crime quando a preparação do flagrante pela autoridade policial torna impossível a sua consumação”. Inclusive, o entendimento jurisprudencial predominante é de que este verbete também se aplica no caso de o flagrante ter sido preparado pelo particular, ocorrendo no caso um crime putativo (imaginário) por obra do agente provocador.
Assim, não se pode falar em responsabilização penal pela conduta daquele que foi instigado a atuar como verdadeiro objeto de manobra do agente provocador. Por consequência, eventual inquérito ou processo iniciados devem ser trancados via habeas corpus, afinal, não houve infração penal.
Outro ponto interessante é que o desiderato inicial do Gaeco era a realização do flagrante pelo crime de concussão sendo que, todavia, foram encontrados 14,5 quilos de maconha na viatura utilizada pelo policial, configurando-se, por conseguinte, o tráfico de drogas com consumação em virtude do núcleo do tipo “trazer consigo” (art.33, § 1º, inciso I, da Lei 11.343/2006), em verdadeiro “encontro fortuito de provas” com admissibilidade questionada no ordenamento jurídico brasileiro.
Sobre tal situação, aliás, frisou o Procurador de Justiça Paulo Prado: “Para nós foi uma surpresa encontrar entorpecente dentro de um carro público, pois investigávamos somente o caso de concussão contra uma pessoa que nos procurou”.
Nesse ínterim, insta assinalar que o advogado criminalista deve sempre estar atento para as circunstâncias do eventual encontro da substância entorpecente (ou prova da materialidade de outro crime) no interior do automóvel, certificando-se de que essa prova não foi plotada por terceiros.
Caso contrário, se houver flagrante forjado, maquinado ou fabricado – no qual a policia ou particulares “criam” falsas provas de um crime inexistente -, as implicações serão: a) imediatas, com o relaxamento da prisão e soltura do acusado e; b) mediatas: com a declaração da ilicitude da prova colhida e seu consequente desentranhamento dos autos bem como tipificação dos crimes de denunciação caluniosa (particular) ou abuso de autoridade (policial) para quem implantar a prova.
Destaque-se, por oportuno, que o habeas corpus é meio hábil para a declaração da ilicitude da prova pelo Judiciário bem como para sua ulterior retirada dos autos, pois, se cabe HC para impedir por ilicitude a realização da prova ordenada, no curso do processo como no do inquérito, com mais razão a sua admissibilidade para questionar a licitude da prova já realizada e pleitear o seu desentranhamento. Destarte, a concessão da ordem seria de enorme valia para o acusado, pois “o que não está nos autos não está no mundo”.
Na realidade, é perfeitamente admissível o encontro fortuito ou eventual de provas referentes a crime diverso do investigado desde que haja conexão entre eles e sejam de responsabilidade do mesmo sujeito passivo, assim como ocorreu no caso “sub judice”, aplicando-se no ponto a serendipidade (do inglês serendipity, que significa buscar uma coisa e encontrar outra; descobertas relevantes ao acaso), adotada pelo Supremo Tribunal Federal (HC 84.224/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13.12.205) a partir de investigações procedidas na denominada “Operação Anaconda”.
Assim, demonstrado à saciedade que o encontro fortuito possui legítimo valor como meio probatório, improsperável se apresenta o pleito de aplicação da “teoria dos frutos da árvore envenenada”. Em contra partida, se o fato não é conexo ou versa sobre outra pessoa (que não tem nenhum vínculo com os fatos investigados) “não poderá valer como prova, podendo, apenas, servir como fonte de prova, ou seja, notitia criminis para fundamentar uma nova investigação”, diz Luiz Flávio Gomes.
Por sua vez, o delito de tráfico de entorpecente enquanto crime de conteúdo múltiplo consuma-se com a prática de qualquer uma das dezoito ações identificadas no núcleo do tipo, a maioria delas de natureza permanente que, quando preexistentes à atuação policial, legitimam a prisão em flagrante, sem que se possa cogitar em flagrante forjado ou preparado.
Por fim, agora o MPE estuda benefícios a traficante que denunciou o policial, isso com fulcro no art.41 da Lei de Tóxicos. Apenas para ilustrar, foi a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) quem abriu o caminho para a introdução da delação premiada no ordenamento pátrio, sendo prevista por diversas leis, tais como: Lei do Crime Organizado e Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro, havendo ainda a tipificação “sui generis” para o crime de extorsão mediante sequestro por força do art.159, § 4º, do Código Penal.
Júlio Medeiros é advogado criminalista, professor de Direito Penal na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).  Secretário da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT. Página pessoal: www.criminalistanato.blogspot.com

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