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Inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória no crime de tráfico de drogas

Posted by Chrystiano Angelo On quinta-feira, 22 de março de 2012 0 comentários
Inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória no crime de tráfico de drogas

Texto de :
Luiz Flávio Gomes



Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio; RUDGE Elisa M. Inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória no crime de tráfico de drogas. Disponível em http://www.lfg.com.br. 09 de abril de 2009.
Decisão monocrática do Min. Celso de Mello:"EMENTA: "HABEAS CORPUS". VEDAÇÃO LEGAL ABSOLUTA, EM CARÁTER APRIORÍSTICO, DA CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. LEI DE DROGAS (ART. 44). INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO "DUE PROCESS OF LAW", DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA "PROIBIÇÃO DO EXCESSO": FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO "STATUS LIBERTATIS" DAQUELE QUE A SOFRE. EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA: FATOR QUE, POR SI SÓ, NÃO AUTORIZA A PRISÃO PREVENTIVA. IRRELEVÂNCIA, PARA EFEITO DE CONTROLE DA LEGALIDADE DO DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR, DE EVENTUAL REFORÇO DE ARGUMENTAÇÃO ACRESCIDO POR TRIBUNAIS DE JURISDIÇÃO SUPERIOR. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. (STF - HC 96715-MC/SP - RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. DJE de 3.2.2009)
Comentários: a Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), em seu artigo 44, proibiu a concessão de fiança e liberdade provisória nos crimes de tráfico. Diz o artigo 44:
"Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos."
A questão que se coloca é a seguinte: poderia uma lei infraconstitucional proibir a liberdade provisória genericamente, tendo em vista o atual ordenamento constitucional?
Absolutamente não!
É que, entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5°, o constituinte colocou a liberdade do indivíduo como regra, e a prisão, como exceção, consagrando o princípio da não culpabilidade (presunção de inocência) e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisões.
"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;"
A prisão provisória é medida excepcional, ou seja, só deve ser decretada quando necessária para preservar a eficácia do processo penal principal e nas hipóteses previstas em lei. "Fora disso estamos diante de uma execução provisória indevida da prisão, verdadeira antecipação de pena." (Direito de recorrer aos Tribunais Superiores em liberdade. Disponível em http://www.lfg.com.br. 06 de fevereiro de 2009).
Ademais, em se tratando da liberdade do indivíduo, a Constituição trouxe garantias mínimas e vedações máximas. Ou seja, pode a legislação infraconstitucional ampliar sem nenhum problema as garantias dos indivíduos. Quando se trata de restringi-las, isso só pode ser feito de forma rigorosamente constitucional (lei, proporcionalidade, respeito ao conteúdo essencial de cada direito etc.).
Assim, é possível a vedação da concessão da fiança no crime de tráfico de drogas (pois esta regra emana do poder constituinte originário), conforme artigo 5°, inciso XLIII da Constituição Federal: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;"
Por outro lado, não é possível que a lei infraconstitucional crie outras hipóteses de inafiançabilidade ou de vedação à liberdade provisória.
Sendo assim, a interpretação que devemos fazer do artigo 44 da Lei de Drogas é a seguinte: nos crimes de tráfico de drogas não cabe liberdade provisória com fiança (são inafiançáveis, conforme artigo 5°, XLIII), porém, é perfeitamente possível a liberdade provisória sem fiança, vez que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;" (art. 5°, inciso LXVI, da CF).
Nesta linha, o legislador revogou o inciso II do artigo 2°, da Lei 8072/90 (Lei dos crimes hediondos) na parte em que vedada a liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados.
"Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II - fiança e liberdade provisória.
II - fiança. (Redação dada pela Lei nº. 11.464, de 2007)"
No mesmo sentido, no julgamento da ADI 3112 [1], o STF se pronunciou pela inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), que vedava a liberdade provisória nos crimes de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo.
Dizia referido artigo: "Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória."
No entanto, a Primeira e a Segunda Turmas do STF vêm entendendo de forma reiterada que é vedada a concessão de liberdade provisória, seja com, seja sem fiança, aos crimes de tráfico de drogas.
HC 95060 / SP - SÃO PAULO. EMENTA: HABEAS CORPUS. PACIENTES DENUNCIADOS POR TRÁFICO DE ENTORPECENTE E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ARTIGOS 12 E 14 DA LEI Nº 6.368/76). PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO. EXCESSO DE PRAZO. TEMA NÃO DISCUTIDO NO TJ/SP E NÃO CONHECIDO PELO STJ. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. CRIME HEDIONDO. CUSTÓDIA CAUTELAR MANTIDA. OBSTÁCULO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL: INCISO XLIII DO ART. 5º (INAFIANÇABILIDADADE DOS CRIMES HEDIONDOS). JURISPRUDÊNCIA DO STF. 1. O Supremo Tribunal Federal não é competente para o imediato exame da tese do excesso de prazo. Tese que não foi discutida no Tribunal de Justiça de São Paulo e, por isso mesmo, nem sequer foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça. 2. Se o crime é inafiançável, e preso o acusado em flagrante, o instituto da liberdade provisória não tem como operar. O inciso II do art. 2º da Lei nº 8.072/90, quando impedia a "fiança e a liberdade provisória", de certa forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do art. 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada pelo legislador ordinário (Lei nº 11.464/2007), ao retirar o excesso verbal e manter, tão-somente, a vedação do instituto da fiança. 3. Manutenção da jurisprudência desta Primeira Turma, no sentido de que "a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: ...seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança..." (HC 83.468, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence). Precedente: HC 93.302, da relatoria da ministra Cármem Lúcia. 4. Consistência das razões adotadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para a manutenção da custódia cautelar dos pacientes. Razões que apontam para a grande quantidade de droga apreendida em poder dos acionados, suficiente para atingir cerca de treze mil usuários. Gravidade concreta dos fatos imputados aos acusados como justificativa da necessidade de garantia da ordem pública. 5. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, denegada. (HC 95060 / SP - STF - Órgão Julgador: Primeira Turma - Relator(a): Min. Carlos Britto - Julgamento: 16/12/2008)
HC 95685 / SP - SÃO PAULO. EMENTA. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. BENEFÍCIO DE APELAR EM LIBERDADE NEGADO. ART. 44 DA LEI 11.343/06. NECESIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA DA DECISÃO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 93, IX DA CF. PERICULOSIDADE DO RÉU. PACIENTE PRESO DURANTE TODA A INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. 1. Esta Corte tem adotado orientação segundo a qual há proibição legal para a concessão da liberdade provisória em favor dos sujeitos ativos do crime de tráfico ilícito de drogas (art. 44, da Lei n 11.343/06). 2. Ainda que ultrapassada a questão da proibição contida no art. 44 da Lei nº 11.343/06, entendo que o presente caso não comporta a concessão da ordem. 3. Verifico que, in casu, o juiz fundamentou suficientemente a decisão de negar ao paciente o direito de recorrer em liberdade, eis que, diante do conjunto probatório dos autos da ação penal, a manutenção da custódia cautelar se justifica para a garantia da ordem pública, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. 4. Houve fundamentação idônea à manutenção da prisão processual da paciente, não tendo o magistrado se valido de "fundamentos genéricos e desvinculados de fatos concretos", como alega o impetrante. Não houve, portanto, violação ao art. 93, IX, da Constituição da República. 5. A periculosidade do réu constitui motivo apto à decretação de sua prisão cautelar, com a finalidade de garantir a ordem pública, consoante precedentes desta Suprema Corte (HC 92.719/ES, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 19.09.08; HC 93.254/SP, rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 01.08.08; HC 94.248/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 27.06.08). 6. Ademais, "é pacífica a jurisprudência desta Suprema Corte de que não há lógica em permitir que o réu, preso preventivamente durante toda a instrução criminal, aguarde em liberdade o trânsito em julgado da causa, se mantidos os motivos da segregação cautelar" (HC 89.824/MS, rel. Min. Carlos Britto, DJ 28-08-08). 7. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus. (HC 95685/SP - STF - Órgão Julgador: Segunda Turma - Relator (a): Min. ELLEN GRACIE - Julgamento: 16/12/2008).
O STJ, por sua vez, não tem um entendimento pacífico sobre o assunto. A Sexta Turma entende ser possível a concessão de liberdade provisória sem fiança no crime de tráfico (AgRg no HC 111250 / SP). Já para a Quinta Turma, veda-se a concessão de liberdade provisória no tráfico, seja com fiança, seja sem (RHC 24970 / RJ).
A nosso ver, uma discussão que não se justifica, devendo prevalecer o sábio entendimento firmado pelo Ministro Celso de Mello no HC 96715-MC/SP: é inconstitucional a vedação legal absoluta e abstrata da concessão da liberdade provisória em relação aos crimes previstos na Lei de Drogas. Trata-se, como muitíssimo bem exposto, de ofensa ao princípio da não culpabilidade (presunção de inocência), do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana e como não poderia deixar de ser, da proporcionalidade.
Com a Lei 11.464/07, vigente desde 29 de março de 2007, desapareceu do tão citado art. 44, a proibição da liberdade provisória aos crimes ali tipificados.
Interpretação diversa gera indisfarçável injustiça, pois, proibindo o beneplácito da liberdade provisória somente para o crime de tráfico (e não para todos os delitos elencados na Lei 8.072/90, alguns até mais graves) são desconsiderados princípios basilares do Direito Penal, como a razoabilidade (e proporcionalidade) e a isonomia. Afinal, por que proibir a liberdade provisória apenas ao traficante e não a um estuprador?
Por último: o juiz, no Estado constitucional e democrático de Direito, que aceita servilmente uma determinação abstrata e genérica do legislador no que diz respeito à concessão ou não da liberdade provisória, abre mão de uma importante parcela da sua função jurisdicional. Torna-se um ser inanimado, como dizia (em outro contexto) Montesquieu. No século XXI já não existe espaço para esse tipo de juiz vassalo (servil) do legislador. Nem tudo que o legislador escreve é válido. É a prudência e sabedoria do juiz que vai glosando o que o legislador faz de equivocado. O Min. Celso de Mello, uma vez mais, com sua sensibilidade e senso de responsabilidade constitucional, está afinado com o melhor direito.

1. ADI 3112 / DF - DISTRITO FEDERAL. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. (...) LESÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AFRONTA TAMBÉM AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. (...) AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA. I (...). IV - A proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de "porte ilegal de arma de fogo de uso permitido" e de "disparo de arma de fogo", mostra-se desarrazoada, porquanto são crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade. V - Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente. (...). IX - Ação julgada procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003. (Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI. DJ 02/05/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno) (grifo nosso)

Fonte: Luiz Flávio Gomes

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