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A imputação objetiva no Direito penal brasileiro: teoria e prática

Posted by Chrystiano Angelo On segunda-feira, 19 de março de 2012 0 comentários
Resumo: Neste ensaio - embora logo, mas penso interessante, pretendo apresentar algumas considerações sobre a teoria da imputação objetiva em relação ao Direito penal brasileiro. Como não há espaço para delinear conceitos mais específicos, os comentários serão diretos. Para ilustrar a exposição lançarei mão de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça que “enfrentaram” o assunto e farei as respectivas análises. Espero que ao final ele seja útil aos meus poucos seguidores.
Palavras chaves: teoria do delito, imputação objetiva, direito penal.
Sumário. (1) Consideração inicial. (2) O Reinado da Teoria da Condição versus o Primado da Teoria da Imputação Objetiva. (3) A Aplicabilidade da Imputação Objetiva no Superior Tribunal de Justiça: estudo de casos práticos. (4) Consideração Final. (5) Referências Bibliográficas.
(1) Damásio de Jesus, penalista brasileiro e nome constante nas decisões dos Tribunais Superiores, a pouco mais de uma década apresentou os postulados da teoria da imputação objetiva em uma obra. O resultado não foi o mais adequado: ao invés de esclarecer, acabou por desorientar. Sorte que outros autores se debruçaram no estudo da teoria. Luís Greco certamente é o principal nome. Este penalista, orientado por Claus Roxin, o próprio revigorador da teoria, busca constantemente minorar o estado de temor gerado pelas imprecisões inaugurais. É com base em seus escritos e de outros destacados autores que fundamento minhas considerações.
(2) Segundo o Código Penal brasileiro, “considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Adota-se, assim, a teoria da condição, “sendo que todas as causas de um resultado são reciprocamente de igual valor” (Rudolphi) com a causalidade entre a conduta e o resultado demonstrada por meio da fórmula da eliminação mental hipotética, isto é, se, eliminando mentalmente a conduta o resultado desaparecer, é porque a conduta deu causa ao resultado. Exemplificando: Eliane, a minha mãe, praticaria uma conduta de matar se, trinta e dois anos depois, eu, Leonardo, matasse alguém, pois, se ela não tivesse dado a luz, a vítima não teria morrido em razão dos disparos (exemplo próximo, com Greco). E o mesmo valeria para a minha avó, bisavó e até para meus “antepassados desconhecidos” (Bacila).
Porém, a causalidade não é a única condição para a imputação do resultado, mas apenas uma delas. Eis a pretensão da imputação objetiva: impedir que qualquer acontecer causal seja considerado objetivamente típico. Para tanto requer uma análise normativa entre a ação praticada e o resultado verificado e essa conexão prescinde da análise conjunta da finalidade, própria do finalismo, ainda bastante em voga em nossas nas instâncias de controle.
Pela teoria da imputação objetiva seria desnecessário recorrer ao tipo subjetivo para eliminar a tipicidade delitiva porque o tipo objetivo é fortalecido pelas elementares da “criação de um risco não permitido e da realização deste risco no resultado”. A criação do risco e a sua desaprovação pelo direito configuram os elementos do “desvalor da ação” e a realização do risco proibido no resultado, ao lado da causação do resultado, representam os elementos do “desvalor do resultado”. A esses dois estágios soma-se um terceiro: a verificação se o “resultado concreto está dentro do alcance do tipo penal” (Roxin).
(3) A técnica da imputação objetiva representa, neste ensaio, o instrumento de busca, sublinho a traço grosso, do indispensável diálogo entre ciência penal e jurisprudência. E desde já esclareço que não pretendo uma imposição de idéias, mas promover um debate recíproco. Minha contribuição será oferecida com base na análise de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça – e existem poucos – que destacaram a teoria da imputação objetiva. Quiçá, depois, alguém fique estimulado a comentar (criticando ou elogiando) estes simples comentários.
(3.1) Habeas corpus n. 68.871-PR, rel. Min. Og Fernandes, DJ 05/10/2009.
(3.1.1) Relatório. O agente, funcionário da Petrobrás responsável pelo atendimento a acidentes envolvendo navios da Transpetro, pretende o trancamento da ação penal na qual responde pelo crime de homicídio culposo (art. 121, § 3º, CP), sob a alegação de ausência de nexo de causalidade entre sua conduta e o resultado morte da vítima.
(3.1.2) Síntese dos fatos. Em 2001, um navio tanque de propriedade da Transpetro, subsidiária da Petrobrás, colidiu com pedras submersas na Baía de Paranaguá, Paraná, e nelas encalhou. Em razão do choque houve o rompimento do casco do navio e o vazamento de substância química altamente tóxica denominada Nafta. Cientificada, a empresa Transpetro acionou o engenheiro naval, ora paciente, pois especialista em atendimento de acidentes, para que coordenasse o socorro ao desastre. Esse funcionário determinou a contratação de uma empresa de mergulhos para a urgente realização de vistorias no casco do navio acidentado. Antes de chegar ao local dos fatos, via telefone, entrou em contato com o mergulhador que realizaria a diligência passando as coordenadas de trabalho e alertando sobre os riscos da atividade em razão da carga tóxica. A vítima realizou um mergulho muito rápido e depois emergiu a uma distância de quarenta metros da embarcação. Depois submergiu novamente, mas apenas retornou quando puxado pelos ajudantes que o retiraram desacordado da água, soltando sangue dos olhos e espuma branca pelo nariz e boca. Os primeiros socorros e o atendimento médico não lograram êxito em salvar a vida do mergulhador. A causa da morte foi intoxicação aguda. A perícia constatou que o equipamento utilizado pela vítima não era o adequado porque não eliminava a possibilidade de inalação, absorção e ingestão de quaisquer substâncias por ventura existentes no local dos fatos.
(3.1.3) Decisão do habeas corpus. Em voto vista – e vencedor – concedeu o relator designado ordem para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido.
(3.1.4) Particulares considerações.
(a) Ao desvalor da ação, como acima destacaso, é acrescida a elementar objetiva da criação de um risco não permitido. No caso, portanto, é necessário, em primeiro lugar, precisar se o risco foi criado e, depois, em caso de sua afirmação, se ele é ou não qualificado como não permitido. São estes os primeiros passos a cumprir.
(a.1) Para precisar se o risco foi criado é necessário saber como uma pessoa prudente a quem se relatam os fatos responderia à questão: a conduta praticada gerou a possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação? Portanto, no contexto apresentado, qual seria a resposta de pessoa uma prudente que saiba que o engenheiro naval determinou que um mergulhador realizasse diligência de vistoria em navio encalhado em área contaminada com produto químico altamente tóxico? Por meio de uma perspectiva ex ante, resultado da aplicação da fórmula da prognóse póstuma objetiva, alcança-se uma resposta no sentido de que a possibilidade de lesão era real. Portanto, a criação de risco por parte do agente (ora paciente) existiu.
(a.2) E o risco criado pelo engenheiro naval merece a desaprovação pelo direito, isto é, ele pode ser considerado um risco não permitido? Qual parâmetro poderia seguir o magistrado para alcançar essa concretização?
(a.2.1) Instrumento importante para desaprovação do risco é a análise das normas técnicas de segurança que regulam a atividade de mergulho que no Brasil estão previstas na Portaria n. 24/83 do Ministério do Trabalho. Assim, necessário precisar se as condições de segurança foram observadas. Houve uma comunicação verbal entre o engenheiro naval e o mergulhador no tocante ao planejamento, preparação, execução e para definição dos procedimentos de segurança na operação de mergulho que seria realizada em condições perigosas, segundo se infere da denúncia. Literalmente: “[...] informando-lhe dos fatos do acidente, da volatilidade do nafta, da impossibilidade do uso de compressor para o mergulho visto o risco de explosão e a possibilidade de intoxicação com os vapores da nafta existentes no ar. Informou, então, que se fazia necessário o uso de cilindro de oxigênio no mergulho [...]”. O fato de o engenheiro não verificar pessoalmente a área na qual o mergulho seria realizado em nada altera a situação, pois especialista em acidentes com navios e sabedor da toxicidade da carga foi diligente em informar à vítima, também na conversa, “[...] para que se dirigisse ao navio Norma, posicionando-se pelo lado de entrada do vento (barlavento), para evitar o contato com nafta existência na superfície da água [...]”. Há quem possa concluir de forma diferente, como o fez a acusação, qualificando o risco como proibido porque o engenheiro naval não orientou o mergulhador a contatar previamente o comandante do navio, bem como o próprio engenheiro não contatou os funcionários da empresa na cidade de Paranaguá para comunicar a pronta realização do mergulho e os responsáveis pela segurança da área afetada. Primeiro pergunto: mas em que o comandante do navio poderia contribuir na operação? Além de navegador, seria ele supervisor de mergulho ou especialista em acidentes? Ademais, pela denúncia vê-se que o engenheiro naval, recorde-se, especialista em acidentes, foi acionado pelos próprios funcionários da empresa Transpetro para que coordenasse o socorro. Logo, é evidente que o mergulho seria realizado o mais rápido possível. E quanto aos responsáveis pela segurança na área, um barco inflável da capitania dos portos interceptou a equipe de mergulhadores, porém depois de conversa entre o engenheiro naval e alguém da capitania, o mergulhador foi autorizado. A meu ver, portanto, nada há de se opor as iniciativas do engenheiro que seguiu uma boa prática para preservar a segurança da vítima.
(a.2.2) Ademais, não se pode olvidar que a atividade de mergulho, por si só, comporta riscos permitidos. Não foi outra a decisão do relator: “[...] à luz da teoria da imputação objetiva, seria necessária a demonstração da criação pelo paciente de uma situação de risco não permitido, não ocorrente, na hipótese. [...] não há como asseverar, de forma efetiva, que o engenheiro tenha contribuído de alguma forma para aumentar o risco já existente (permitido) ou estabelecido situação que ultrapasse os limites para os quais tal risco seria juridicamente tolerado. É sabido que o dano jurídico ocorrido dentro dos limites do risco permitido exclui a imputação objetiva, tornando o fato atípico [...]”. Com efeito, ainda que o risco tenha sido criado, sendo este permitido, não se pode falar em desvalor da ação e, por conseguinte, torna-se desnecessária a análise do desvalor do resultado.  
(3.2) Recurso especial n. 822.517-DF, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29/06/2007.
(3.2.1) Relatório. O agente foi denunciado pelo delito de homicídio culposo de trânsito (art. 302 da Lei n. 9.503/97) e posteriormente condenado à pena de dois anos e seis meses de detenção e suspensão da carteira de habilitação por um ano. Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal reduziu ambas as penas e manteve as demais cominações impostas. Opostos embargos de declaração, os mesmos foram rejeitados. No recurso especial a defesa argumentou a impossibilidade de se imputar a responsabilidade penal apenas com base no art. 13 do Código Penal, pois a imprudência cometida estaria dentro dos limites da doutrina do risco permitido, uma vez que o agente transitava em via pública deserta, às três horas da madrugada, em velocidade de apenas 10 km acima da permitido ao local. E por fim argumentou que a vítima faleceu porque não estava utilizando o cinto de segurança.
(3.2.2) Síntese do decreto condenatório e da decisão no recurso de apelação. O réu e a vítima estavam em uma boate e saíram juntos por volta das três horas da madrugada. O réu fez uso de álcool como confessou no interrogatório. No caminho o réu apenas se deu conta de um radar eletrônico quando estava próximo de uma curva em ‘S’ e ao reduzir a alta velocidade que empregava para evitar a “foto e multa” perdeu o controle vindo a colidir na guia da calçada com conseqüente capotamento do qual resultou a morte da vítima. Discordou o magistrado da velocidade apontada no laudo pericial, julgando que o acidente decorreu pela impropriedade da técnica de redução de velocidade empregada e pelo álcool ingerido pelo agente. Afastou a culpa exclusiva da vítima informando que não houve comprovação de que ela estava sem o cinto de segurança. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve a condenação pelos fundamentos apontados na sentença, afastando a possibilidade de aplicação da teoria da imputação objetiva sob a fundamentação de que a relação causal não decorreu do acréscimo de velocidade, contudo “da direção descuidada ou inábil do apelante, vindo, em primeiro lugar, a colidir com a guia da calçada ou da pista, e em seguida, desgovernando-se, fez com que o veículo capotasse e, no capotamento, a passageira ao lado sofreu lesões que lhe causaram a morte”.
(3.2.3) Decisão do recurso especial. Destacou o relator que as alegações apresentadas pela defesa sobre o laudo não conclusivo da perícia e do pequeno excesso de velocidade refoge ao âmbito do Tribunal Superior, na medida em que seria necessário o reexame das provas, o que está vetado por entendimento sumulado. Ademais, confirmou o afastamento da aplicação do que a doutrina denomina de risco permitido.
(3.2.4) Particulares considerações.
(a) Segue-se o mesmo procedimento de análise realizado no primeiro julgado. Logo, primeiramente é necessário precisar se o risco foi criado e, depois, em caso de sua afirmação, se ele é ou não qualificado como não permitido.
(a.1) Para precisar se o risco foi criado é necessário saber como uma pessoa prudente a quem se relatam os fatos responderia a seguinte questão: a conduta gerou a possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação? Assim, no contexto apresentado, qual seria a resposta de uma pessoa prudente que saiba que a vítima estava em veículo conduzido por um agente que havia previamente ingerido bebida alcoólica e depois conduzido em velocidade acima da permitida para a via de trânsito? Por meio de uma perspectiva ex ante, resultado da aplicação da fórmula da prognóse póstuma objetiva, alcança-se uma resposta no sentido de que a possibilidade de lesão era real. Portanto, a criação de risco por parte do agente existiu.
(a.2) E o risco criado pelo agente merece a desaprovação pelo direito, ou seja, ele pode ser considerado um risco não permitido? Na ponderação entre o interesse de proteção do objeto de ação e o interesse de liberdade, o principal fundamento da desaprovação, alguns parâmetros devem ser utilizados pelos juízes para alcançar uma conclusão se a conduta é proibida.
(a.2.1) No caso em tela o relator se posicionou da seguinte maneira: “[...] trata-se da ocorrência de um risco proibido, pois o recorrente agiu em contrariedade com o ordenamento jurídico, ao dirigir após ingestão de bebida alcoólica e trafegar em via pública empreendendo velocidade acima da permitida. Tal conduta não é tolerável, mas proibida”. Como chegou a essa conclusão? O Ministro, ao iniciar o estudo do mérito do recurso, salientou que a análise do excesso de velocidade refoge ao âmbito de sua alçada (reexame de prova), mas recorreu a esse fator para dizer que o recorrente praticou uma ação proibida. Também se serviu de prova, mormente o interrogatório do recorrente, no qual este confirmou a ingestão de bebida, para desaprovar o risco pelo prévio consumo de álcool. Então para fundamentar a decisão há somente um auxílio da prova e não o seu reexame? Logo, vou me valer desta interpretação para posterior conclusão.
(a.2.2) Fez uso o relator das chamadas normas jurídicas de segurança como fator de concretização do risco não permitido. Tais normas jurídicas “ditam proibições de colocação em perigo abstrato cuja infração fundamenta em geral a criação de um perigo proibido” (Roxin). “Em geral”, como destacou o ilustre penalista, pois o que em abstrato é perigoso pode não sê-lo no caso concreto. Logo, quem infringe o limite de velocidade ou quem dirige embriagado acaba por apenas, indiciariamente, criar um risco proibido. Eis porque a análise de todas as circunstâncias do caso concreto deve ser realizada, mas assim não entendeu o relator. Destaco textualmente: “[...] as circunstâncias que envolvem o fato em si não podem ser utilizadas para atrair a incidência da teoria do risco permitido e afastar a imputabilidade objetiva, se as condições de sua aplicação se encontram presentes, isto é, se o agente agiu em desconformidade com as regras de trânsito, causando o resultado jurídico que a norma visava coibir com sua previsão original. O fato de transitar às três horas da madrugada e em via deserta não pode servir de desculpa ao agente para agir em desconformidade com a legislação de trânsito, como quer fazer crer o recorrente. Isto não é risco permitido, mas atuação proibida [...]”. Um setor da doutrina penal não entende desta forma. Há um “risco-base” (Frisch) que acompanha a obediência à norma jurídica. Em resumo: ainda que o agente atue seguindo todas as normas jurídicas de segurança ele poderá criar uma situação de risco proibido e, mesmo que viole essas mesmas regras, seu comportamento poderá ser permitido. Atente: “não há superação do risco-base se, mesmo dirigindo em excesso de velocidade, o condutor está numa rua completamente deserta” (Greco). Assim, afasto a tese de que se o agente desrespeitou a norma jurídica automaticamente deverá ser condenado pelo crime, bem como a recíproca, pois não é porque o condutor respeitou todas as normas jurídicas que não poderá ser responsabilizado penalmente pelo ocorrido.
(a.3.3) A ciência penal precisa da jurisprudência, contudo esta parece não precisar daquela. Mas vou insistir no meu propósito: um diálogo. E para isso nada melhor do que continuar a análise do recurso especial. Subsidiariamente a defesa do motorista argumentou que a lesão ao bem jurídico decorreu porque a respectiva titular para tanto contribuiu ao não usar o cinto de segurança e, assim, implicitamente quebrou a confiança que deve reger as relações interpessoais e, por esse motivo, a responsabilidade penal deve ser afastada, pois o risco não seria proibido. Na sentença de primeiro grau foi afastada a culpa exclusiva da vítima porque tal circunstância não foi comprovada. Ademais, afirmou o juiz “[...] reconheço que o réu agiu com culpa de não se ater ao cuidado objetivo de fiscalizar o uso de cinto de segurança pela passageira/vítima”. Em segundo grau a decisão foi integralmente aceita. Logo, a mesma conclusão. Depreende-se, pelo menos a meu ver, que as instâncias ordinárias entenderam que o condutor é garantidor do passageiro. Sendo isso verdadeiro, apenas será possível falar em confiança negativa e o risco seria proibido. O dever de agir, pelo Código Penal (art. 13, § 2.º, a), incumbe a quem tenha por lei obrigação de proteção. Lei, em sentido estrito, ou seja, decorrente de um processo legislativo. No caso, é o Código de Trânsito Brasileiro que, em quatro preceitos aborda o tema “cinto de segurança” e em nenhum salienta que o condutor deve fiscalizar se o passageiro o está usando. A meu ver, portanto, poder-se-ia sim argumentar que a confiança foi quebrada pela vítima. No recurso especial a defesa insistiu neste propósito, mas relator salientou que, como se trata de matéria de prova, o seu reexame está vedado (Súmula n. 7).
(a.3.4) Algumas conclusões parciais: o risco foi criado porque um homem prudente considera real a possibilidade de dano ao objeto de ação quando a vítima se encontra dentro de veículo conduzido por pessoa que previamente ingeriu bebida alcoólica e que depois se coloca a dirigir em excesso de velocidade. Há parâmetro para desaprovação do risco como proibido uma vez que o agente desobedeceu às normas jurídicas de segurança. Assim, o “desvalor da ação” está completo, devendo-se passar a análise do “desvalor do resultado”.
(b) Também destaquei que o “desvalor do resultado” é enriquecido com a teoria da imputação objetiva, pois este não se resume à relação de causalidade, mas exige a realização do risco proibido no resultado. Eis a segunda etapa de análise do injusto penal.
(b.1) Há nexo de causalidade entre a conduta do agente e a morte da vítima, porque, pelo processo de eliminação hipotética, se o agente não estivesse na boate, não conversasse com a mulher e não a convidasse para sair do local, seja para comer um cachorro quente ou ir até o seu apartamento para continuar a festa, ela não teria entrado no veículo que posteriormente veio a capotar e, assim, estaria viva. Logo, o primeiro requisito está preenchido.
(b.2) Mas resta saber se o que ocorreu concretamente era o que a norma jurídica de trânsito visava impedir em abstrato. No caso, a norma proibitiva – dirigir sob o efeito de álcool ou em excesso de velocidade – visava evitar que o bem jurídico – vida alheia, daquele que está na via de trânsito ou de quem está ao lado do condutor – fosse afetado. Logo, numa comparação entre o “que ex post ocorreu e o que ex ante justificava a proibição” (Greco) há total harmonia e, assim, pode-se dizer que o risco foi realizado no resultado. Também o segundo requisito do desvalor do resultado estaria configurado.
(c) Resta, portanto, apenas uma última análise, qual seja, saber se o resultado concreto está dentro do alcance do tipo penal e, neste âmbito, não se pode esquecer que a tutela típica encontra barreira na autoresponsabilidade da vítima, até porque uma das conquistas da teoria da imputação objetiva foi a redescoberta do ofendido para fins de tipicidade penal.
(c.1) A conduta da vítima já seria decisiva se o fato dela não usar o cinto de segurança, por si só, fosse suficiente para comprovar a sua morte, mas, por evidente, como ressaltou o Ministro, isso diz respeito à prova e não pode ser novamente analisado. E se não se pode analisar a falta de cinto de segurança porque haveria reexame de prova, penso que, da mesma forma que interpretou o relator, isto é, valendo-se da prova apenas para fundamentar o porquê de não se aplicar a imputação objetiva, é possível analisar a conduta da vítima no sentido de ter aceito ou pedido uma carona ao agente para alcançar uma resposta se esta teoria passaria a ter alguma importância para aferição da responsabilidade penal do agente.
(c.2) O presente julgado relata um caso de heterocolocação em risco consentido no qual a vítima “não ocupava a posição central na atividade perigosa” (Greco). Não é possível excluir a responsabilidade do agente por eventual consentimento da vítima porque o direito de disposição da vida é absoluto só por parte de seu titular e, na hipótese, o fato decorreu de conduta de pessoa estranha a essa titularidade. Assim, devem ser analisados os requisitos da heterocolocação para saber se ainda é possível falar em responsabilidade do agente.
(c.2.1) Em primeiro lugar “o comportamento da vítima não foi irracional” (Puppe), porquanto para sair da boate e ir até o carro do agente, independente do motivo, estava consciente, isto é, foi voluntariamente e não coagida. Depois, não se exige que a vítima represente o risco da mesma forma que o agente, o que seria inclusive impossível, pois se encontram em posições diversas, mas tão-somente que ela “saiba o suficiente sobre os riscos” (Puppe). O que ela sabia, e inclusive o relator mais de uma vez destacou, é que o condutor havia ingerido álcool. Diante desta circunstância, apenas resta precisar, como terceiro requisito, “se o dano foi conseqüência direta desse risco assumido pela vítima ou se existiu algum fator adicional” (Roxin).
(c.2.2) Para o Ministro relator dois fatores contribuíram ao evento morte: a embriaguez do agente e o excesso de velocidade. Ocorre que este último fator por dois motivos não poderia ser considerado. Primeiro, pois em algum momento a Súmula n. 7 do Superior Tribunal de Justiça deve favorecer ao agente. Explico: a perícia não concluiu que a causa do acidente foi o emprego de velocidade acima do permitido e a consideração desse fator pelo Ministro corresponde, sem qualquer dúvida, a reexame da prova. Segundo, porque já em sede de apelação o Tribunal de Justiça do Distrito Federal afastou esse critério como o responsável pelo acidente e, por não haver recurso desta decisão pela acusação, este fator não poderia ser “ressuscitado” no Tribunal Superior sob pena de prejuízo do agente, o que de fato está mais do que evidente. Permanece só a embriaguez, isto é, o exato fator que a própria vítima conhecia e do qual decorreu o dano.
(c.2.3) O resultado concreto, portanto, não está dentro do alcance do tipo penal, pois a vítima abandonou por completo a segurança do seu bem jurídico ao aceitar ou pedir carona, seja lá porque o fez, devendo-se, por evidente, ao contrário do que entendeu o nobre relator, valorar o estado de coisas criado por ela com seu ato irresponsável e intencional. Em outros termos, a vítima lesionou pessoalmente o fim que se destina tutelar o tipo penal e isso, a meu ver, seria suficiente para não gerar a responsabilidade penal do condutor.
(3.3) Habeas corpus n. 46.525-MT, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 21/03/2006.
(3.3.1) Relatório. O agente, denunciado por homicídio culposo (art. 121, § 3º, CP), pretende o trancamento da ação penal sob a alegação de falta de justa causa para a instauração da ação penal, em face da ausência de nexo de causalidade entre o resultado morte da vítima e uma conduta relevante que a ele possa ser atribuída.
(3.3.2) Síntese dos fatos. Conjuntamente com outros integrantes de uma comissão de formatura o agente organizou uma festa com presença de aproximadamente setecentas pessoas, na qual a vítima faleceu após ter sido jogada dentro da piscina por alguns colegas, não narrando a denúncia do Ministério Público à participação direta do paciente no resultado. A perícia concluiu que o afogamento decorreu em virtude da vítima ter ingerido substâncias psicotrópicas.
(3.3.3) Decisão do habeas corpus. Concedeu o relator ordem para trancar a ação penal pela atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido.
(3.3.4) Particulares considerações.
(a) O procedimento de interpretação é idêntico; logo, imprescindível demonstrar se o risco foi criado e, depois, em caso de sua afirmação, se ele é qualificado como não permitido.
(a.1) Portanto, novamente questiono: a conduta praticada gerou a possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação? Um homem prudente não tem, a princípio, por que supor que o simples fato de o agente compor uma comissão de formatura e promover uma festa de confraternização entre estudantes gere real possibilidade de lesionar o bem jurídico. No entanto, a interpretação do homem prudente pode ser diversa quando a ele for relatado que nessa festa houve distribuição imoderada de álcool e drogas, o que tornava qualquer convidado mais vulnerável a um perigo. Assim, com base nesses conhecimentos especiais ele poderia admitir a criação do risco e, assim, a primeira condição estaria preenchida.
(a.2) E o risco seria desaprovado pelo direito, isto é, seria um risco proibido? Quais os parâmetros que poderia seguir o magistrado para alcançar eventual desaprovação?
(a.2.1) Por evidente não há normas jurídicas de como realizar uma confraternização estudantil, mas algumas normas técnicas devem ser respeitadas, como, por exemplo, a avaliação do projeto técnico – em síntese, do local da festa e das medidas de segurança adotadas – pelos bombeiros e conseqüente expedição de laudo positivo, pois com base neste documento é que a prefeitura emitirá o alvará solicitado pelo organizador do encontro, ou seja, a comissão de formatura. Esta diligência, segundo a denúncia não foi cumprida: “[...] Outrossim, também não se preocuparam em obter alvará de autorização, necessário nos casos de realização de eventos de grande magnitude, visto que estavam presentes cerca de setecentas pessoas [...]”. Como “ponto de partida” (Greco), o descumprimento das normas técnicas é um parâmetro de concretização do risco como não permitido, mas assim não entendeu o relator: “[...] ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários para a organização da festa por parte da comissão de formatura está fora dos limites do que se denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando um risco permitido, isto é, um risco geral de vida [...]”.
(a.2.2) Um segundo fator de desaprovação é o princípio da confiança, pois aquele que descumpre o seu papel social não pode fazer com que o risco, salvo nos casos de confiança proibida, seja qualificado como não permitido. E sobre o citado princípio destacou o relator: “sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu no caso, pois a vítima veio a afogar-se, segundo narra a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência da previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta [...]”. Em meu entendimento a interpretação foi errônea: o comportamento que se espera adequado ao padrão social é que nenhum dos participantes arremesse outros convidados na piscina, mormente quando por parte destes há consumo prévio de drogas. A circunstância de alguém consumir substância psicotrópica nada se relaciona ao princípio da confiança, mas a autocolocação em risco, como na seqüência irei trabalhar. Mas vou além: pergunto ao relator como confiar em que não é mais digno de confiança, como um entorpecido? Pessoalmente entendo que se trata de um clássico exemplo de confiança negativa.
(a.2.3) Alcanço, portanto, conclusões em sentido diametralmente oposto: não falo de princípio da confiança – assim destacou o relator – e afirmo que foram descumpridas normas técnicas de segurança – assim não entendeu o relator – e, por isso, entendo possível caracterizar o risco como proibido e, assim, o desvalor da ação estaria completo, devendo-se passar à análise do segundo elemento do injusto penal: o desvalor do resultado.
(b) Também destaquei que o “desvalor do resultado” é enriquecido com a teoria da imputação objetiva, pois não se resume a relação de causalidade, mas exige a realização do risco proibido no resultado. Inicio a análise desta segunda etapa.
(b.1) A questão jurídica levantada na impetração do habeas corpus se situa no âmbito da ausência de relação da causalidade. O que de fato existiu é que uma ou várias pessoas jogaram a vítima na piscina, mas não se sabe quem o fez, e a denúncia não aponta o paciente como o autor da proeza. A narrativa da denúncia é genérica e, assim, por ausência de um requisito processual se poderia falar no trancamento da ação penal. E mais, a festa não deixaria de ser realizada pelo fato de o agente não pertencer à comissão de formatura; logo, o resultado não desapareceria e, assim, a conduta do agente não deu causa ao resultado. E esta conclusão é alcançada pelo processo de eliminação hipotética. Ausente o primeiro requisito do desvalor do resultado já não haveria motivos para se falar em punição.
(b.2) Entretanto, e somente para insistir no objetivo deste ensaio que, recordo a todos, é aproximar a ciência da jurisprudência, e não havendo dados suficientes apenas com a leitura deste acórdão para determinar uma responsabilidade por omissão uma vez considerando a posição de garantidor do paciente, considero automaticamente que há nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado, ou seja, passo a entender que foi o agente quem jogou a vítima dentro da piscina e provocou a sua morte. Necessário precisar, assim, o outro requisito do desvalor do resultado, isto é, a materialização do risco proibido. Questiono: o que ocorreu concretamente era o que a norma técnica visava impedir em abstrato? O alvará era exigência necessária para fins de realização da festa, mas não objetivava evitar que uma pessoa fosse arremessada na piscina e desse ato viesse a falecer. Logo, entendo que não haveria congruência entre o que ex post ocorreu e o que ex ante procurava proteger a norma técnica e, assim, também o segundo requisito do desvalor do resultado não estaria preenchido.
(b.3) Mas novamente apenas a título de argumentação, passo a entender que o alvará foi expedido para que a festa transcorresse com total segurança e, assim, qualquer curso causal que violasse essa finalidade, afetando o bem jurídico, estaria abrangido pelo fim de proteção da norma e, portanto, restaria preenchido o segundo requisito do desvalor do resultado, bastando analisar se o resultado concreto estava dentro do âmbito de proteção do tipo penal.
(c) Neste aspecto recordo que a tutela típica encontra limite na auto-responsabilidade da vítima e, no presente caso, o relator fez questão de abordar a autocolocação da vítima em risco nos seguintes termos: “[...] por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal [...]”. E poder-se-ia realmente falar em autocolocação em risco? Por evidente que sim, mas apenas com relação aos desdobramentos normais do consumo de drogas que, como qualquer pessoa sabe, não é morrer afogado numa piscina se arremessado por seus colegas, pouco importando se a piscina “dava pé ou não”. Portanto, uma vez mais contrariando o ilustre relator, não vejo como essa autocolocação em risco possa ganhar o destaque atribuído.
(d) Pelo exposto concluo: o trancamento da ação penal é correto por um fundamento processual e outro penal: o primeiro diz respeito à generalidade da peça exordial que impede o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo agente; o segundo se refere à ausência de nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, nos termos pelos quais o Código Penal brasileiro aborda o assunto. Todavia, também recorreu o relator aos postulados da teoria da imputação objetiva e resumiu seu pensamento nos seguintes termos: “[...] ainda que se admita a existência da relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não ocorrente, na hipótese, uma vez que é inviável exigir de uma comissão de formatura rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes da festa [...]” que, penso eu, não foram corretamente analisados, por tudo que anteriormente foi exposto.
(4) Os mais atentos verificaram que os três julgados do Superior Tribunal de Justiça analisados dizem respeito a crimes de homicídio culposo, mas que o exemplo apresentado no início deste ensaio se refere a um crime de homicídio doloso. Todavia, nada impede que os requisitos da imputação objetiva – “que nada mais são do que os requisitos do delito culposo, mas com outro alcance” (Greco) – sejam também estendidos aos delitos dolosos, afastando a tipicidade penal sem recorrer efetivamente à análise do extrato subjetivo. Basta, para tanto, seguir o mesmo caminho que destaquei na análise dos julgados. Assim, pergunto: há por que um homem prudente supor que o fruto de uma gestação de amor, trinta e dois anos depois (ou seja, o Leonardo), gerará real possibilidade de lesão ao bem jurídico vida de um terceiro? Vê-se que a responsabilidade penal da minha querida mãe seria cortada já na raiz. Eu, contudo, não teria a mesma sorte, porque a minha conduta criou um risco juridicamente desaprovado, houve a realização deste risco e o resultado concreto está albergado pelo âmbito de proteção do tipo penal de homicídio. “Cadeia nele”, diria o saudoso Alborgheti.
Penso ter demonstrado, depois de percorrer este longo caminho que, confesso, foi bastante árduo, que a teoria da imputação objetiva, quando compreendida, apresenta capacidade de rendimento bastante interessante. Cabe a quem estiver envolvido no julgamento decidir entre aplicá-la ou não. Caso se decida por aplicar, que decida pela orientação de uma doutrina penal qualificada.
(5) Obras de apoio e consultadas: Bacila, Carlos Roberto. Teoria da Imputação Objetiva. Curitiba: Juruá, 2008; D’Ávila, Fábio Roberto. Crime Culposo e Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004; Greco, Luís. Um Panorama da Teoria da Imputação Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; Jesus, Damásio. Imputação Objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000; Reis, Marco Antonio Santos. “Novos Rumos da Dogmática Jurídico-Penal: da superação do finalismo e de sua suposta adoção pelo legislador brasileiro ao necessário esclarecimento funcionalista”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 78. São Paulo: RT, 2009; Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Trad. Diego Luzón Peña, Díaz Colledo, Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; Rudolphi, Hans Joachim. Causalidad e Imputación Objetiva. Trad. Claudia López Días. Colombia: Universidad Externado, 1998.

Fonte:http://atualidadesdodireito.com.br/leonardodebem/2012/03/16/a-imputacao-objetiva-no-direito-penal-brasileiro-teoria-e-pratica/



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