Pesquisar este blog

Crime culposo e Teoria da imputação objetiva

Posted by Chrystiano Angelo On terça-feira, 27 de março de 2012 0 comentários
Crime culposo e Teoria da imputação objetiva


| Autor: Luiz Flávio Gomes
A teoria da imputação objetiva não é nova nem tampouco é uma teoria. Não é nova porque sobre ela já se discorria (Larenz, v.g.) no princípio do século XX.[1] De outro lado, não é propriamente uma teoria, senão um conjunto de princípios elaborado para cumprir a função de delimitar e corrigir o nexo de causalidade.

O maior impulso que recebeu tal "teoria", depois da Segunda Guerra Mundial, sem sombra de dúvida, foi de Roxin, que é o responsável pela criação de uma corrente alemã denominada de funcionalismo teleológico-funcional ou teleológico-racional ou teleológico-políticocriminal[2] (o Direito penal existe para cumprir determinados fins, existe "em função" desses fins, que são retratados nos princípios político-criminais: da intervenção mínima, da exclusiva proteção de bens jurídicos etc.).
Consiste tal teoria basicamente em três grandes regras (das quais, depois, podemos inferir várias outras):
(a) a criação (ou incremento) de um risco proibido relevante:
(b) conexão direta entre esse risco e o resultado jurídico;
(c) que esse resultado esteja no âmbito de proteção da norma.
Em outras palavras, o agente só pode ser responsabilizado penalmente por um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado o fato), se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) decorreu diretamente desse risco e estava no âmbito de proteção da norma.
A teoria da imputação objetiva difere da responsabilidade objetiva (que significa responder por um crime sem ter atuado com dolo ou culpa). Difere ainda da imputabilidade penal que significa a capacidade da pessoa (de entender e de querer e) de ser ou não reprovada pelo injusto penal que praticou. Chama-se imputação objetiva porque procura descobrir se o fato pode ser imputado ao agente, independentemente do seu dolo (do seu estado anímico ou subjetivo).
Vincula tal teoria, portanto, a conduta do agente com o risco proibido criado (ou incrementado) (teoria da imputação objetiva da conduta) assim como o resultado jurídico com esse risco e, ao mesmo tempo, com o âmbito de proteção da norma (teoria da imputação objetiva do resultado). Há, como se vê, duas modalidades de imputação objetiva: da conduta e do resultado.
Na imputação objetiva da conduta o que queremos saber é se ela criou (ou incrementou) um risco proibido relevante. Se a conduta, apesar de típica formalmente, era permitida, não há que se falar em criação de risco proibido. Conduta permitida (exemplo: intervenção cirúrgica) não gera risco proibido (enquanto respeita todas as regras da medicina). Logo, é atípica (porque típica, doravante, só pode ser a conduta descrita na lei que cria ou incrementa um risco proibido).
Na imputação do resultado importa saber duas coisas: (a) se existe conexão direta entre ele e o risco criado e (b) se ele está inserido no âmbito de proteção da norma.
Não há consenso entre os doutrinadores se deveríamos adotar a teoria da imputação objetiva da conduta ou do resultado ou ambas. Há muita divergência sobre isso. Por razões metodológicas, creio que melhor é enfocar o tema em duas vertentes distantes: imputação da conduta e imputação do resultado. O elo existente entre ambas é inegável. Só por razões didáticas, dir-se-ia, melhor é cuidar delas separadamente.
Referida teoria, de outro lado, complementa (não substitui) a teoria do nexo causal (art. 13 do CP - teoria da conditio sine qua non). De modo algum podemos abrir mão do velho nexo de causalidade. A comprovação material e física do elo existente entre a conduta e o resultado naturalístico é uma garantia que não podemos dispensar.
No dizer de Wellington Lima, a imputação objetiva é a sintonia fina da imputação penal. Se pudéssemos nos valer de uma imagem, diríamos que o nexo de causalidade é uma peneira de (malhas) espaços grandes enquanto a imputação objetiva conta com orifícios menores. Muitos fatos passam pelo filtro (maior) do nexo de causalidade, não porém pelo (menor) da imputação objetiva.
Uma vez constatada a causalidade natural (ou mecânica ou causal), importa agora, ainda no âmbito da tipicidade, também verificar a imputação objetiva, que é levada a efeito de acordo com seus critérios normativos. Leia-se: a imputação normativa (objetiva) vem depois da comprovação da causalidade natural. Só se pode falar em imputação objetiva (juízo valorativo ou normativo de imputação), em suma, depois de constatada a adequação formal do fato à letra da lei.
Na esfera da tipicidade material, por conseguinte, impõe-se verificar:
(a) primeiro a causalidade natural ou mecânica (conduta, resultado naturalístico ? nos crimes materiais ? e nexo de causalidade) (nos casos de crime de mera conduta ou formais basta a constatação da conduta típica);
(b) num segundo momento o vínculo normativo (a imputação objetiva), onde então devemos verificar se a conduta criou ou incrementou um risco proibido relevante e se o resultado jurídico derivou desse risco e estava no âmbito de proteção da norma.
Impende sublinhar, de outro lado, que a teoria da imputação objetiva aplica-se a todos os delitos (materiais, formais, mera conduta, comissivos ou omissivos etc.).
A imputação objetiva, de outra parte, é requisito normativo (ou axiológico) do fato ofensivo típico. É, ademais, requisito implícito do tipo penal.
Teoria da imputação objetiva e o crime culposo: a doutrina penal clássica fundamenta o crime culposo na inobservância do cuidado objetivo necessário, que se manifesta (ou se revela) na imprudência, negligência ou imperícia.
Com base nessa premissa, seriam requisitos do tipo de injusto culposo: a) conduta humana (dominável pela vontade); a) inobservância do cuidado objetivo devido (imprudência, negligência ou imperícia); c) previsibilidade objetiva do resultado; d) produção de um resultado involuntário; e) nexo causal; f) tipicidade.
Para a doutrina clássica, portanto, culpa é a inobservância do cuidado objetivo necessário que se exterioriza numa conduta (imprudente, negligente ou imperita) que produz, em regra, um resultado naturalístico previsível (objetiva e subjetivamente). Mas há crime culposo sem resultado naturalístico (CPM, art. 381). Outro exemplo: CP, art. 270 ? envenenamento culposo de água potável.
Para nós a estrutura do fato materialmente típico culposo (na linha do r. voto abaixo não deve distanciar-se da do crime doloso, com ressalva da imputação subjetiva (que só é exigida neste tipo de delito). Ela conta, portanto, com uma dimensão fática e outra axiológica. Culpa, na atualidade, com a adoção da teoria da imputação objetiva (que esgota todo o seu conteúdo típico normativo), consiste na realização de uma conduta que cria ou incrementa um risco proibido relevante do qual deriva uma previsível lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido.
A dimensão fática (do crime culposo) coincide com o que ensinava a doutrina clássica: (a) conduta; (b) resultado naturalístico involuntário (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade. Essa dimensão fática continua válida. É, aliás, necessária (não há crime sem uma base fática), embora não suficiente.
A principal mudança ocorrida no crime culposo está na dimensão axiológica: a clássica doutrina valia-se de distintos critérios para se chegar ao crime culposo: inobservância do cuidado devido ou do cuidado necessário, conduta descuidada, previsibilidade objetiva, evitabilidade etc. Toda essa dimensão axiológica do crime culposo hoje está retratada na teoria de imputação objetiva.[3]
Valendo-nos de todos os critérios da imputação objetiva podemos concluir se houve ou não um fato típico culposo (em sua dimensão axiológica). Não é correta a postura de manter os clássicos critérios de imputação (previsibilidade, evitabilidade, inobservância do cuidado objetivo necessário etc.) juntamente com a imputação objetiva. Ou são adotados os critérios antigos ou os novos. A simbiose não é válida, em razão da mescla desnecessária de critérios.
Para a doutrina constitucionalista do delito (que acolhemos) são, por conseguinte, requisitos do fato materialmente típico culposo:
1º) conduta humana voluntária (realização formal ou literal da conduta descrita na lei);
2º) resultado naturalístico involuntário (nos crimes materiais - exemplo: homicídio culposo; recorde-se que há crime culposo sem resultado naturalístico. Exemplo: CP, art. 270 ? envenenamento culposo de água potável);
3º) nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado naturalístico);
4º) imputação objetiva da conduta (leia-se: criação ou incremento de um risco proibido penalmente relevante e objetivamente imputável à conduta negligente ou imprudente ou imperita);
5º) resultado jurídico relevante (ofensa ao bem jurídico = desvalor do resultado = lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico);
6º) imputação objetiva do resultado jurídico, que significa duas coisas: (a) conexão direta do resultado jurídico com o risco proibido criado ou incrementado; (b) que esse resultado esteja no âmbito de proteção da norma.
Os três primeiros requisitos esgotam a dimensão fática do crime culposo; os três últimos pertencem à dimensão axiológica (ou normativa ou valorativa). A dimensão axiológica do fato materialmente típico não substitui nem elimina a dimensão fática. Mais propriamente, é um suplemento corretivo e delimitador dela.
Remarque-se que a exigência de um resultado jurídico (em todos os delitos) assim como os princípios norteadores da imputação objetiva (seja da conduta, seja do resultado) nada mais representam que limites corretivos da tipicidade formal (ou fática ou natural ou mecânica ou ôntica). São exigências que dão à tipicidade a qualificação de "material" porque a torna mais rígida, mais justa, mais garantista (leia-se: mais consentânea com os valores e princípios constitucionais e político-criminais).
Para descobrir se uma conduta foi ou não culposa (leia-se: se se trata ou não de uma culpa imputável ao agente), de outro lado, a clássica doutrina fundava-se na inobservância do cuidado objetivo necessário e na previsibilidade do resultado. Para se aferir se o resultado era ou não previsível valia-se do famoso homem-médio, homem-padrão, pessoa prudente, pessoa dotada de razoabilidade e discernimento etc. Esse critério de descoberta da culpa é absolutamente arbitrário e obsoleto.
O Direito penal é direito do caso concreto e do homem concreto: "Negligência representa não observância dos parâmetros do dever de cautela, juridicamente impostos a qualquer pessoa, o momento em que realiza a conduta. A antevisão do fato deve traduzir-se de modo concreto e não de modo abstrato. O Direito penal da culpa é incompatível com o antigo homo medius. A investigação da conduta dever ser individual" (STJ, HC 3.299-SP, Vicente Cernicchiaro, DJU de 22.06.98, p. 174).
Para se verificar se houve ou não culpa devemos considerar o homem concreto que está sob julgamento, seus conhecimentos, suas possibilidades de atuação e suas habilidades. A dogmática penal moderna tem que abandonar definitivamente o critério do homem-médio, com o qual nunca iremos nos encontrar (e tampouco tomar um café). Para se saber se o fato é culposo ou não temos que aferir as condições e circunstâncias do caso concreto, assim como as condições e habilidades do homem concreto, sua profissão, seu conhecimento, as regras da sua atividade etc. Tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos devem ser analisados em cada caso concreto, conjuntamente.
Com isso estamos acolhendo a teoria da individualização da capacidade do agente (que exige a consideração do fato concreto e do homem concreto envolvido no fato). Diferentemente da teoria da dupla posição da previsibilidade (a objetiva pertenceria ao tipo e a subjetiva à culpabilidade), o que importa é considerar o fato e suas circunstâncias individualizadoras, assim como o agente desse fato (em toda sua integralidade). Todos os dados objetivos (do fato) e subjetivos (do agente) fazem parte do juízo de tipicidade (e, em conseqüência, do injusto penal culposo).
O eixo normativo do crime culposo reside na criação (ou não) de um risco proibido relevante. É saber se o sujeito extrapolou os limites do socialmente e profissionalmente aceito. A norma que emana do crime culposo exige do agente um determinado comportamento cuidadoso. E temos que levar em conta a capacidade de atuação do sujeito concreto. Seu poder de agir, de se comportar conforme a norma. Sua capacidade de dirigir corretamente sua conduta. Na hipótese do condutor de veículo que está aprendendo a dirigir, maior exigência de cuidado é requerida do instrutor que do condutor (que está justamente aprendendo uma nova atividade).
A boa aplicação de todos os critérios e princípios da imputação objetiva (que já foram vistos) diminuirá sensivelmente a (possível) arbitrariedade do julgador no reconhecimento da culpa em cada caso concreto. De qualquer modo, certo é que também no crime culposo a tipicidade passa a exigir dois momentos de aferição:
(a) num primeiro momento importa verificar a dimensão fática (conduta humana voluntária, resultado naturalístico ? nos crimes materiais ? e nexo de causalidade);
(b) no segundo momento releva constatar a imputação normativa (imputação objetiva da conduta e do resultado jurídico). A tradicional análise naturalística passa a constituir só o primeiro momento do fato (materialmente) típico.
Do ponto de vista doutrinário o r. voto abaixo transcrito observa rigorosamente os ditames do moderno Direito penal, que ainda precisa ser conhecido por todos (estudantes, professores e aplicadores da lei). Temos que constantemente nos esforçar para descobrir o novo. E todo esforço, não há dúvida, significa tempo, dedicação, empenho, energia etc. Em outras palavras, significa dor. Mas não há sucesso nem conhecimento sem dor (Rogério Caldas). Aliás, a dor está presente desde logo na própria palavra conheceDOR.
TRIBUNAL DE ALÇADA DE MINAS GERAIS APLICA A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA A CRIME CULPOSO
Apelação Criminal n. 356.212, Belo Horizonte
2.ª Câmara Criminal
Apelante: Ministério Público
Apelados: H.H.B. e H.P.A.H.
Data do julgado: 14 de maio de 2002
Relator: Juiz Antônio Armando dos Santos
2.º Vogal: Juiz Alexandre Victor de Carvalho
Unânime.
Excertos do acórdão.
"VOTOS - O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos: Quanto aos fatos, narra a denúncia de f. 2-6 que os réus agiram de forma negligente ao administrar a unidade industrial da M., situada no Barreiro, local em que foram vítimas os menores D.S.V., M.J.F.L., e C.R.S., lesionados por queimaduras de 2.º e 3.º graus, sendo que o último, não resistindo aos ferimentos, veio a falecer. Segundo a inicial acusatória, aos 26.7.1996, D.S.V., de dez anos, adentrou o terreno da empresa dos réus, objetivando resgatar uma 'pipa', o mesmo ocorrendo com os menores M.J.F.L. e C.R.S. em data de 31.7.1996. Não obstante o terreno ser de grande perigo, já que formado por rescaldo (moinha) de carvão incandescente - derivado do processamento de ferro gusa - o local não era devidamente sinalizado ou vigiado, possibilitando a entrada de estranhos na empresa, como ocorreu com os menores. Adentrando o terreno, as vítimas menores se depararam com uma camada de significativa espessura sobre o solo, mas em combustão espontânea em seu interior, que foi a causa eficiente para as queimaduras experimentadas.
(...)
Em suma, é o relatório.
(...)
O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos:
NO MÉRITO
(...)
A partir dos elementos fáticos destacados pelo Parquet, postos à análise segundo um ponto de vista meramente lógico-formal das categorias dogmáticas do Direito Penal, poder-se-ia sustentar a tese condenatória pretendida. Todavia, o conjunto de elementos fáticos apurados, aliado a uma visão problemática - e não sistemática - das categorias penais, conduz a manutenção da decisão vergastada.
É de sabença comezinha que o crime culposo sempre ocupou posição secundária na Teoria do Crime, restando, assim, nas palavras de Fábio Roberto D'Ávila, 'à margem da dogmática jurídico-penal'. Entretanto, a evolução das relações sociais, conduzidas pelo próprio avanço tecnológico do homem, culminou no aumento de situações de perigo, reflexo de uma sociedade mecanizada e em constante transformação. Neste contexto, a atual visão do crime culposo, fruto da Teoria Finalista da Ação - mostra-se inapropriada a reger inúmeras relações jurídicas do mundo cotidiano, pois estando presa a um conceito puramente lógico, acaba por relegar a um segundo plano o ideal de Justiça, fim último da Ciência Jurídica. Com efeito, o estudo das teorias do crime anteriormente elaboradas (causalismo, neokantismo, finalismo) apenas se preocuparam com a construção de um sistema jurídico-penal lógico (fechado), de modo a fornecer aos operadores do Direito um instrumento para aplicação da lei penal. Ora, na Teoria Causal de Ação, a tipicidade era formal. Assim, a mera subsunção do fato praticado ao modelo legal de crime implicaria na tipicidade da conduta, sem se avaliar nenhum outro elemento. Isto porque, enquanto fruto de um Positivismo Científico (ou empírico), o Causalismo tinha por finalidade garantir o máximo de segurança jurídica, mediante a objetividade e o formalismo nos conceitos das categorias dogmáticas do crime. Entretanto, esta visão estritamente formal deixava de explicar satisfatoriamente inúmeras situações práticas, conduzindo, em muitos casos - principalmente naqueles desprovidos de previsibilidade do sinistro - a decisões injustas.
No atual sistema - Finalista - o rigor formal foi amenizado sem, contudo, implicar em significativas mudanças. Isto porque a tipicidade exigia, além da subsunção formal, a falta de adequação social da conduta praticada, sendo este critério avaliado a partir do consenso comum do que seria certo - ou errado - em um comportamento.
Reflexo desta visão lógico-formal das categorias penais consistiu na adoção pelas legislações penais da chamada Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais, ou teoria da conditio sine qua non, desenvolvida por Julius Glaser, visando solucionar o processo de imputação nos crimes materiais. Segundo esta teoria, o resultado lesivo só é imputado a quem lhe deu causa, considerando-se esta toda ação ou omissão sem a qual o evento final não teria ocorrido. Logo, a mera relação de causalidade naturalística entre o fato e o resultado mostrar-se-ia suficiente ao processo de imputação e conseqüente responsabilização penal.
Atualmente, vem tomando grande relevância na comunidade jurídica os estudos desenvolvidos pelo penalista alemão Claus Roxin, em que procurou dar às categorias do Direito Penal uma nova dimensão, sempre preocupada com os ideais de justiça. Para tal, reestruturou a concepção lógico-formal das categorias do Direito Penal tratadas nas anteriores teorias do crime, que, repita-se, apenas se preocupavam no regular e bom funcionamento do sistema penal, de modo que ele se desenvolvesse de forma lógica, ainda que as soluções não fossem justas. Entende Roxin que, se a justiça é o fim último do Direito, não há como prevalecer um raciocínio meramente sistemático defendido pelos sistemas penais pretéritos. Ao contrário, far-se-á justiça através de um raciocínio problemático - de análise caso a caso das situações postas à apreciação dos operadores do Direito. Para redefinir as categorias dogmáticas do Direito Penal (ação, tipicidade, ilicitude, culpabilidade), valeu-se de elementos valorativos de Política Criminal como critério reitor para a solução dos problemas vislumbrados. Neste norte, a reestruturação do elemento tipicidade merece destaque, pois nela houve considerável mudança na verificação do nexo de causalidade, sendo ali re-introduzido o conceito de imputação. Assim, a chamada Teoria da Imputação Objetiva fez superar o dogma causal, ao exigir para o tipo objetivo, além da conexão naturalística ação-resultado (causalidade natural), a necessidade que esta conexão, segundo valores de política criminal, sejam imputados ao autor como obra jurídica sua (casualidade típica). Esta modificação introduzida no âmbito da causalidade ajudou a acabar com o subjetivismo extremado do finalismo, que dava muita ênfase ao tipo subjetivo (dolo/culpa), através de uma maior valoração do tipo objetivo, notadamente incidente sobre o nexo de causalidade. Vê-se, pois, que o nexo de causalidade físico não mais implicaria, por si só, em nexo de causalidade jurídico.
Verificada a insuficiência, ou imperfeição, da causalidade natural como determinante da imputação, passou-se a analisar o tipo objetivo à luz de critérios teleológicos-normativos, complementares do tipo, e restritivos da causalidade. Trabalhou-se o conceito de causa dado pela Teoria da Relevância Típica (elaborada por Edmund Mezger), em que causa era concebida como 'o evento em que o nexo causal era relevante para o tipo'.
Restou à Teoria da Imputação Objetiva, pois, definir quando o nexo causal seria relevante para o tipo. Concluiu-se que a relevância surgiria da análise do nexo de causalidade a partir de critérios valorativos (normativos) do ordenamento jurídico. Este, por sua vez, foi definido pelo Princípio do Incremento do Risco, aferido da ponderação entre os bens jurídicos e os interesses individuais, a partir da análise do risco que o segundo poderia causar ao primeiro.
Em síntese: para se falar em nexo de causalidade é necessário que, após a verificação da causalidade física, seja constatado que o agente criou um perigo relevante fora do âmbito do risco permitido.
A imputação objetiva, embora não prevista na codificação pátria, não tem sua aplicação vedada pelo ordenamento. Emerge como objeto de estudo em diversos países, sendo efetivamente aplicado. No Brasil, conta com crescente adesão dos estudiosos do Direito Penal, sendo que várias decisões dos Tribunais pátrios já se valeram de seus fundamentos, inclusive esta 2.ª Câmara Criminal.
Extrai-se, pois, a finalidade da imputação objetiva: analisar o sentido social de um comportamento, precisando se este se encontra, ou não, socialmente proibido e se tal proibição se mostra relevante para o Direito Penal. Portanto, para se ter a imputação objetiva será necessário, além da causalidade natural, a verificação da criação de um risco jurídico penalmente relevante, imputável no resultado e alcançado pelo fim de proteção do tipo penal. Criou-se, então, diversos critérios valorativos de natureza negativa que, uma vez verificados, excluiriam a imputação objetiva frente a não valoração da conduta como juridicamente relevante para o resultado, culminando na irrelevância jurídica do nexo causal para o tipo.
In casu, há a exclusão da imputação não só pela permissão do ordenamento jurídico ao risco criado, como também pelo fato de o resultado produzido não estar amparado pelo fim de proteção da norma de cuidado. Por fim, rompe-se o nexo de causalidade pelo consentimento das vítimas em sua autocolocação na situação de perigo.
DA INEXISTÊNCIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA PERMISSÃO DO ORDENAMENTO AO RISCO CRIADO
A questão dos autos cinge-se à aferição da responsabilidade dos réus H.H.B. e H.P.A.H. pelas lesões causadas em D. e pelo óbito de C., pois mantendo postura omissa e negligente, não realizando o efetivo acondicionamento de material nocivo (moinha de carvão), tampouco o correto isolamento da área industrial - mediante vigilância, sinalização e cercamento do local - permitiram a entrada das vítimas em suas dependências e a ocorrência dos sinistros. Em que pese a postura dos réus - não acondicionamento do material nocivo - ter incrementado o risco para a produção dos resultados lesivos, verifica-se que as medidas adotadas para a destinação daquele material (moinha de carvão) encontrava-se em consonância com as regras administrativas, contando mesmo com a tolerância dos órgãos públicos quanto à solução traçada. É de se destacar que os lamentáveis acidentes apurados nestes autos ocorreram dentro dos prazos consignados no Termo de Compromisso para a acomodação dos indigitados resíduos sólidos, revelando que a empresa dos réus comportava-se dentro dos parâmetros estabelecidos pelos órgãos ambientais (itens 3.3 e 3.5, do quadro de f. 144).
Do exposto, vê-se que a postura da empresa dos réus estava amoldada às determinações dos órgãos competentes, que fiscalizando constantemente suas atividades, entendia possível não só a prorrogação de prazos para a destinação dos resíduos sólidos - em limites por ela estabelecidos - como também a continuidade das atividades industriais, mediante permissão provisória. Logo, embora se sustente que a postura da empresa tenha gerado um incremento no risco para o resultado materializado nos menores, certo é que as medidas então adotadas encontravam-se em perfeita consonância como as determinações administrativas competentes. Desta forma, surge o conflito, pois embora subsista a causalidade natural do evento, tem-se por prejudicada sua causalidade típica, pois não há como desvalorar uma conduta que se encontra em harmonia com as regras do sistema jurídico.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELO FATO DE O RESULTADO PRODUZIDO NÃO ESTAR AMPARADO PELO FIM DE PROTEÇÃO DA NORMA DE CUIDADO
O dever objetivo de cuidado exigido dos réus consistia na correta destinação ou armazenamento de resíduos sólidos derivados da produção de ferro gusa (moinha de carvão), até porque a inobservância deste dever permitiu a realização dos trágicos resultados apurados nas vítimas. Contudo, muito embora se tenha demonstrado que este dever objetivo fora cumprido de forma adequada e tolerável pelos órgãos competentes, vê-se que o destinatário do cuidado objetivo não eram as vítimas menores, mas sim a qualidade do meio ambiente como um todo. Pedindo vênia aos que entendem em contrário, tenho que a orientação traçada pelas normas administrativas destinavam-se ao resguardo do meio ambiente contra possíveis danos a serem causados à coletividade, v.g., a poluição do lençol freático da região. Logo, se o resultado fatídico apurado não se encontrava no fim imediato de proteção da norma de cuidado, impossível se mostra à imputação, sob pena de se resgatar o temível versari in re ilicita.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA AUTOCOLOCAÇÃO DA VÍTIMA NA SITUAÇÃO DE PERIGO
Por fim, tenho que a imputação do resultado se mostra prejudicada, pois patente no caso em tela que as tenras vítimas se autocolocaram na situação de risco. Objetivando resgatar uma 'pipa', os menores adentraram as instalações da empresa dos apelados, vindo a sofrer as graves lesões (queimaduras e morte, respectivamente) em razão da existência de moinha de carvão no terreno da empresa. Ora, o comportamento das vítimas é que determinou a ocorrência do resultado lesivo, e não a suposta conduta omissiva dos apelados, não havendo que se falar em criação de risco por parte destes. Como verificado nas provas amealhadas, a empresa possui um muro divisório de quase três (3) metros de altura, dotado de arame-farpado em sua parte superior. Esta construção possui cerca de 1,5 Km de extensão, objetivando isolar a área da empresa da entrada de estranhos. Paralelamente à existência deste muro, o local possui placas de advertência, alertando com dizeres de 'Perigo' e 'Proibida a entrada de estranhos', contando com vigilância periódica de empresa terceirizada.
Neste ponto, oportunas se fazem em algumas considerações acerca do denominado 'Princípio da Confiança'. Os apelados agiram segundo seu dever, procurando o isolamento da área do parque industrial, confiando que as medidas adotadas fossem suficientes a afastar os estranhos dos limites da empresa. Por sua vez, os menores infringiram o dever de respeitar a propriedade privada, embora advertidos não só pela existência das barreiras físicas (muros) e visuais (placas), como também pelas advertências verbais feitas pelos seus genitores, conforme apurado à f. 468.
Por todo o exposto, e diante das inúmeras peculiaridades do caso colocado à apreciação, entendo que a pretendida responsabilização dos apelados, com base em uma causalidade meramente naturalística, não espelha o ideal de Justiça perseguido pela sociedade e pelo Direito Penal.
Fiel a essas considerações e a tudo mais que dos autos consta, julgo parcialmente procedente o presente apelo tão-somente para, acolhendo a preliminar eriçada pelo Parquet, nos termos do art. 107, IV, do CP, declarar extinta a punibilidade dos réus H.H.B. e H.P.A.H. pelo crime de lesões corporais culposas, em tese, perpetrados contra a vítima M., por ausência de condição específica de procedibilidade da ação penal. Entretanto, entendendo que os lamentáveis acidentes somente ocorreram face dos comportamentos imprudentes das vítimas, no mérito mantenho incólume a r. sentença absolutória por seus próprios e jurídicos fundamentos. É como voto."

[1] Cf. D´Àvila, Fábio Roberto, Crime culposo e a teoria da imputação objetiva, São Paulo: RT, 2001, p. 38 e ss.
[2] Cf. ROXIN, Claus, Derecho penal-PG, trad. LUZÓN PEÑA et alii, Madrid: Civitas, 1997, p. 216 e ss.
[3] Cf. D´ÁVILA, Fábio Roberto, Crime culposo e a teoria da imputação objetiva, São Paulo: RT, 2001, p. 41 e ss. Nesse mesmo sentido: ROXIN, Claus, Derecho penal-PG, trad. Luzón Pena et alli, Madrid, Civitas, 1997, p. 993 e ss.. Cf. ainda JESUS, Damásio E. de, em Direito e Justiça, Correio Braziliense, de 05.05.03, p. 1. Esse autor, nesse artigo, faz um balanço da relação da teoria da imputação objetivo com o crime culposo no Brasil e menciona vários autores adeptos da idéia (Fernando Galvão, Greco, Selma Santana etc.). Em sentido contrário acham-se as opiniões de Pierangelli e Paulo Queiroz. Segundo nossa visão, os critérios e princípios da imputação objetiva colocam em segundo plano os velhos critérios de imputação da doutrina clássica (previsibilidade objetiva, evitalibidade etc.). A imputação objetiva é muito mais razoável e conta com maior chance de eliminação da arbitrariedade
Fonte: Luiz Flavio gomes 

0 comentários:

Postar um comentário