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Matar antes ou morrer depois: Estado de necessidade ou perigo iminente

Posted by Chrystiano Angelo On domingo, 11 de dezembro de 2011 0 comentários

Na redação do artigo 241 do Código Penal, o legislador brasileiro não cogitou expressamente da possibilidade de configurar situação de estado de necessidade o enfrentamento de perigo iminente.
2. Teria o legislador dito menos do que aquilo que pretendia dizer? Pode-se, assim, realizar uma interpretação extensiva do referido artigo 24? Em síntese, são compatíveis estado de necessidade e perigo iminente?
3. Os que façam interpretação literal, ou mesmo sistemática, dos artigos 24 (estado de necessidade) e 252 (legítima defesa) do Código Penal (1ª corrente), haverão de dizer: a omissão, na redação do artigo 24, foi intencional. Com efeito, a havida especificação, no artigo 25, quanto à natureza da agressão – atual ou iminente – de par com a não especificação no artigo 24, no tocante à iminência do perigo, evidencia a opção do legislador em não acatar, no estado de necessidade, a possibilidade de ser iminente o perigo a se enfrentar.
4. Poderiam, ainda, os defensores desta linha de pensamento acrescentar: quisesse o legislador que o perigo, no estado de necessidade, fosse também iminente, teria dito com todas as letras.
5. De outro lado, os que façam interpretação teleológica do artigo 24 (2ª corrente) apressar-se-iam em contestar: desarrazoado o raciocínio acima posto. E, para afastar qualquer dúvida, exemplificariam: Imagine-se um barco em alto mar. Dois tripulantes no barco. Uma bomba-relógio programada para explodir em uma hora. Pergunta-se: poderiam os tripulantes, meia hora antes da iminente explosão da bomba, disputar – até a possível morte de um deles – o único bote salva-vidas, que os livraria do perigo, ou – como entende a 1ª corrente – deveriam os tripulantes – impotentes e aflitos - esperar o perigo iminente tornar-se atual, com a explosão, para só então lutar pela vida?
6. Não há dúvida. Razão cabe à 2ª corrente.
7. O exemplo de Michael J. Sandel, no pertinente, é esclarecedor.
8. Em seu “Justiça: O Que é Fazer a Coisa Certa”3, Sandel relata episódio intitulado “Os Pastores de Cabra Afegãos”, o qual robustece a tese defendida pela 2ª corrente.
9. No episódio, os fatos assim se passaram.
10. Em meados de 2005, uma equipe da marinha dos Estados Unidos, composta por 4 homens, é destacada para uma missão secreta no Afeganistão, mais especificamente na fronteira com o Paquistão. Lá, deveriam prender um líder do Talibã, que, de acordo com a inteligência norte-americana, tinha sob comando 140 a 150 combatentes fortemente armados. Ocorre que os americanos, já em seu esconderijo, se deparam casualmente com dois camponeses e suas ruidosas cabras, acompanhados ainda de um menino de pouco menos de 14 anos. Os afegãos estavam desarmados. De imediato, o grupo de militares norte-americano se viu ante o seguinte dilema: não tendo cordas para amarrá-los, até encontrarem outro esconderijo, restaria aos marinheiros matar os pastores e, assim, garantir suas próprias vidas e o sucesso da operação militar ou soltá-los e serem submetidos ao massacre pelos combatentes Talibãs, que, avisados de sua presença pelos pastores, virão, por certo, em seu encalço, ávidos de sangue.
11. Na forma narrada por Sandel, um dos marinheiros opinou: “Estamos em serviço atrás das linhas inimigas, enviados para cá por nossos superiores. Temos o direito de fazer qualquer coisa para salvar nossa vida. A decisão militar é óbvia. Deixá-los soltos seria um erro”4. Prevaleceu, no entanto, a vontade do comandante da operação, o suboficial Marcus Luttrell, que, pautado em sua “alma cristã”, optou por libertar os pastores, decisão da qual, após o episódio, arrependeu-se amargamente, já que – nas palavras de Sandel: “Cerca de uma hora e meia depois de ter soltado os pastores, os quatro soldados se viram cercados por cerca de cem combatentes talibãs armados com fuzis AK-47 e granadas de mão”5.
12. Findo o combate, restaram mortos os 3 companheiros de Luttrell, bem como 16 soldados norte-americanos, que, em um helicóptero, tentavam salvar os marinheiros em terra. Luttrell, milagrosamente, sobreviveu. Anos após, sentindo ainda o gosto amargo de sua decisão, consoante escreve Sandel, asseverou: “Eu devia estar fora do meu juízo. Na verdade, dei meu voto sabendo que ele poderia ser nossa sentença de morte. (…) O voto decisivo foi meu, e ele vai me perseguir até que me enterrem em um túmulo no leste do Texas”6.
13. O episódio narrado configura, de fato e de direito, situação de estado de necessidade, em que os marinheiros, amparados pela lei, poderiam ter sacrificado as vidas dos pastores afegãos, para salvar suas próprias vidas em perigo, dada a iminência do ataque Talibã.
14. Luttrell, no entanto, decidiu não matar os pastores. E, ao decidir, parecia que escutava uma voz interior que lhe dizia: “Não se deve matar a sangue-frio”7, ao mesmo tempo que fechava os ouvidos à voz pungente do companheiro amedrontado: nossas vidas correm extremo perigo.
15. Viu-se, pois, Luttrell ante verdadeiro “dilema moral”, que, apertando-lhe o peito, o fazia ruminar: “Devo matar antes ou morrer depois? Afinal, neste caso, o que é fazer a coisa certa?”.
1Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua própria vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
2Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
3SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
4Op. cit., p. 34.
5Op. cit., p.34.
6Op. cit., p. 35.
7Op. cit., p. 34

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