Pesquisar este blog

Quando furar a fila atende ao interesse público

Posted by Chrystiano Angelo On domingo, 13 de novembro de 2011 0 comentários
Sob o título "Ser juiz para furar fila?", o artigo a seguir é de autoria de Carolina Nabarro Munhoz Rossi, Juíza de Direito de São Paulo, e foi publicado originalmente no site "Judex, Quo Vadis?"

Hoje participei de um programa da rádio Bandeirantes, o Linha Direta com a Justiça, em que diversos profissionais do Direito respondem dúvidas da população. Uma das perguntas que escolhi responder veio de um ouvinte bastante revoltado por dizer que fica na fila da balsa Santos-Guarujá enquanto juízes, promotores e oficiais de Justiça não pegam fila, ele acredita, porque teriam prioridade, como se estivessem em alguma emergência e como se cuidassem dos processos com a mesma urgência...
Aquelas palavras me deram uma tristeza.
Primeiro pela raiva que o ouvinte parecia ter de juízes e promotores, sem perceber que trabalhamos em prol do interesse público que se sobrepõe sim, ao privado e que se não conseguimos atuar mais rapidamente não é por falta de vontade mas em virtude do sistema jurídico que é resultado do trabalho do Legislativo e muitas vezes da falta de estrutura das varas em que atuamos, onde faltam escreventes para dar andamento aos processos e cumprir nossas decisões.
Depois por ele imaginar que exista este tipo de prioridade e não perceber como ela poderia sim ser necessária e útil para quem aguarda aquele juiz que se divide entre as varas de Santos e Guarujá, por exemplo, como eu mesmo fiz varias vezes enquanto substituta, ficando parte do dia em Cubatão e indo as seis da tarde fazer audiência de instrução envolvendo réus presos por tráfico de drogas em Vicente de Carvalho, Distrital do Guarujá, porque as duas varas estavam vagas e só tinha eu de substituta na circunscrição naquela época. Quantas vezes algum pedido de liberdade provisória, alguma liminar, até mesmo de fornecimento de medicamento ou de realização de cirurgia, ficava me esperando chegar, enquanto eu pegava a fila da balsa? Eu estava a trabalho e sempre fiquei na fila, mas qualquer prioridade que tivesse seria em prol do serviço público que realizava, por interesse público, ou não? Eu não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas cada minuto a menos que ficasse em Cubatão seria retirado de algum processo, mas poderia ser utilizado para os processos do Guarujá. E os minutos na balsa?
Esse é o sentido de qualquer prerrogativa ou prioridade e sendo o juiz aquele que aplica o Direito, que estuda o caso concreto e verifica qual a lei que será aplicada a ele, muito me choca que se tenha essa imagem do juiz, de alguém que furaria a fila da balsa por motivos egoísticos ou por se achar melhor que as outras pessoas que ali esperam...
Talvez existam juízes assim e nesse caso, peço desculpas em nome do Poder Judiciário pelos mesmos, mas asseguro que são minoria, pois não se pode viver de aplicar as leis sem as respeitar, não se pode viver ouvindo os outros para verificar qual a norma aplicável a seu caso concreto sem aprender a enxergar as outras pessoas e respeitar seus direitos...
Ninguém consegue bem viver com tal grau de hipocrisia e o próprio sistema se encarrega de encaminhar estas pessoas para outras carreiras onde possam ter mais poder, mais dinheiro e menos contato com a dor alheia...
Muito me entristece essa imagem do juiz como um oportunista e espertalhão, a usar seu cargo como meio de acesso a facilidades que as outras pessoas não teriam e não como alguém que exerce um poder em nome do Estado e como tal precisa de algumas garantias para bem realizar esse serviço. Poupar o tempo de percurso deste profissional para o seu trabalho, onde processos dos quais a tranquilidade de tantas pessoas depende, talvez fosse inteligente, já que esse tempo em última instância, por ser pago pelo Estado, é pago por todos nós, inclusive por aquele ouvinte.
É apenas para facilitar o exercício desse serviço que a todos interessa que juízes e outras autoridades têm, por exemplo, atendimento preferencial em filas de banco e cartório, porque o tempo que perdem ali será retirado do trabalho que poderiam estar fazendo.
O juiz hoje, com a carga de trabalho que tem, não pode se dar ao luxo de perder uma hora que seja da sua manhã resolvendo algum problema no banco, por exemplo. E acreditem, também temos problemas no banco que podem impedir qualquer bom profissional de bem exercer seu trabalho que depende principalmente da sua mente...
Não temos horário fixo, mas isso não traz alívio se o volume de processos que aguardam nossa decisão é tão grande que impede sua resolução nas oito horas de trabalho que outros profissionais costumam fazer.
Temos responsabilidade e sabemos das pessoas que aguardam o resultado daquele processo que espera nossa decisão e isso tem um peso muito maior para quem tem comprometimento com seu trabalho.
Fico triste, mas sei que respeito não se exige, se conquista e em algum ponto tivemos essa imagem associada à nossa carreira e já passou da hora de mostrar que não é assim. Somos um poder imparcial e isento, mas não mudo. O silêncio, por muito tempo considerado a melhor postura, para mantermos a neutralidade, passou a ser visto como arrogância e confissão de culpa e tornou-se sinal de covardia.
Talvez se todos soubessem o que é ser juiz em nosso país, com que dificuldade muitas vezes não só ele, mas todos os funcionários do Judiciário trabalham, com falta de material, sem novas contratações mesmo com o número de feitos aumentando, sem reposição de funcionários que se aposentam ou se exoneram, trabalhando sempre para tentar diminuir o atraso sem perspectiva de zerar o acervo, o que leva a muitos afastamentos por depressão, entendessem que o juiz não é essa pessoa que vive de aplicar a lei para os outros mas não para si próprio, mas sim alguém que um dia motivado por um forte ideal de Justiça acreditou que poderia fazer diferença, vivendo desse ideal e hoje tenta não ser engolido em meio à burocracia...
Fonte: Blog do Fred

0 comentários:

Postar um comentário