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Colônia Penal...

Posted by Chrystiano Angelo On sábado, 6 de agosto de 2011 0 comentários
na colônia penal....

-Ele não conhece a própria sentença?
-Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.







Quem escreve o post de hoje é Franz Kafka.

O texto que segue é de sua novela “Na Colônia Penal”. Uma descrição hiper-realista da máquina concebida para que o condenado sinta na carne o peso e a descrição da sentença que recebeu, e de um “processo penal” que mescla o absurdo e a simplicidade, o grotesco e a eficiência.

Não me arrisco a interpretar o genial autor, mas o texto serve de uma só penada como alerta aos exageros comuns da repressão, ao atavismo da disciplina e obediência, aos perigos da verdade preconcebida, à crueldade inata da pena. Tudo aquilo a que devemos nos atentar e coibir no cotidiano criminal


Na Colônia Penal”*

(...)

-Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo -o oficial apontou para o homem- será gravado: Honra o teu superior!

O explorador levantou fugazmente os olhos na direção do homem; este manteve a cabeça baixa quando o oficial apontou para ele, parecendo concentrar toda a energia da audição para ficar sabendo de alguma coisa. Mas o movimento dos seus lábios protuberantes e comprimidos mostrava claramente que não conseguia entender nada. O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas:

-Ele conhece a sentença?

-Não –disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações.

Mas o explorador o interrompeu:

-Ele não conhece a própria sentença?

-Não –repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:

-Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.

O explorador já estava querendo ficar quieto quando sentiu que o condenado lhe dirigia o olhar, parecia indagar se ele podia aprovar o procedimento descrito. Por isso, o explorador, que já tinha se recostado, inclinou-se de novo para a frente e ainda perguntou:

-Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?

-Também não –disse o oficial e sorriu para o explorador, como se esperasse dele algumas manifestações insólitas.

-Não –disse o explorador passando a mão pela testa. –Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?

-Ele não teve oportunidade de se defender –disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.

-Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender –disse o explorador erguendo-se da cadeira.

O oficial se deu conta de que corria perigo de ser interrompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso caminhou até o explorador, tomou-o pelo braço, indicou com a mão o condenado, que agora se punha em posição de sentido, já que a atenção se dirigia a ele com tanta evidência –o soldado também deu um puxão na corrente- e disse:

-As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. O novo entretanto já mostrou vontade de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo –e vou continuar conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão simples como todos os outros. Hoje de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado seu ordenança e dorme diante da sua porta, dormiu durante o serviço. Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever sem dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se a ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo todo encolhido. Pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. Ao invés de se levantar e pedir perdão, o homem agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “Atire fora o chicote ou eu o engulo vivo”. São estes os fatos. Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença. Depois determinei que pusessem o homem na corrente. Tudo isso foi muito simples. Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não largo mais. Está tudo esclarecido? (...)

* ed. Cia das Letras, 2011, p. 36-39; tradução Modesto Carone

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