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No Brasil, exame criminológico é uma farsa

Posted by Chrystiano Angelo On quinta-feira, 12 de maio de 2011 0 comentários
Expansionismo penal
No Brasil, exame criminológico é uma farsa

Ao requerer perante os juízos de execução penal do país o reconhecimento do direito à progressão de regime (artigo 112 da Lei 7.210/84, chamada de Lei de Execução Penal; e artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei 8.072/90, denominada de Lei dos Crimes Hediondos) ou ao livramento condicional (artigo 83 do Código Penal e artigo 131 da Lei de Execução Penal), o condenado provavelmente irá enfrentar a farsa do exame criminológico, requisito não mais contemplado pela lei, mas que tem servido insidiosamente aos propósitos do expansionismo penal.
Não obstante cumpra o condenado com os requisitos objetivos (fração de pena cumprida e, quando exigido por lei, a reparação de dano à vítima) e subjetivos para o reconhecimento do direito (bom comportamento carcerário e, quando exigido por lei, a demonstração da possibilidade de prover licitamente a sua subsistência), sói acontecer de o juiz da execução penal decidir pelo indeferimento do pleito, somente em razão do contido nos laudos técnicos, ignorando todos os demais requisitos elencados pela lei.Quanto aos conteúdos dos laudos psicológicos e psiquiátricos que formam o chamado “exame criminológico”, estes são, pelo que se observa na prática, extremamente lacônicos e sem apuro técnico, de modo que não poderiam tais documentos, por si sós, impedir a concessão da medida, ainda mais levando em consideração que eles não vinculam o juiz (ex vi do artigo 182 do Código de Processo Penal).
É inegável que o laudo tem valor relativo em razão de sua natureza meramente opinativa, devendo ser analisado conjuntamente com os demais requisitos exigidos para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional. Assim, o juiz não fica adstrito às conclusões extraídas pelos peritos, ainda mais quando as condições pessoais do requerente indicam a viabilidade da fixação de regime prisional mais brando ou até mesmo a sua colocação em liberdade condicional.Note-se que os Tribunais têm reconhecido o valor relativo do laudo:“Não se pode beneficiar em demasia o exame criminológico, que representa, apenas, um instrumento de auxílio do Juiz, sem vinculá-lo às suas conclusões. Assim, a autoridade judiciária não fica adstrita às opiniões ou presunções estabelecidas no trabalho pericial, podendo decidir contrariamente a elas sempre que julgar conveniente em nome do interesse maior que é o social” (STJ – RT 716/422).“O Magistrado não está vinculado de modo absoluto à conclusão do laudo criminológico, para fins de progressão de regime prisional, vez que aquele tem natureza meramente opinativa” (TACRSP – RJDTACRIM 24/31).O que se verifica na prática é que muitas vezes o requerente “reprovado” no exame criminológico apresenta bom comportamento carcerário, conduta tranqüila, saúde psíquica e, frequentemente, apoio familiar. Condições essas, portanto, mais do que favoráveis para a concessão da medida requerida.Ademais, tais condições, por demonstrarem a intenção do apenado de retornar à sociedade, deveriam preponderar sobre as conclusões supostamente desfavoráveis dos laudos técnicos, estes de vago teor subjetivo, os quais se restringem a afirmar, sem maior fundamentação, que o condenado “apresenta juízo crítico empobrecido e ausência de arrependimento”, que “não está apto a progredir de regime, apesar de apresentar normalidade psíquica”, “que não manifesta arrependimento sobre seus atos” ou que “não está preparado para introjetar novos valores sociais” – apenas para citar alguns dos clichês comumente empregados pelo expertos.Aliás, a experiência profissional do autor deste artigo como advogado criminalista não deixa escapar o fato de que o conteúdo dos laudos são em sua maioria idênticos a outros já realizados e referentes a outros condenados, como se, curiosamente, todos os indivíduos encarcerados tivessem o mesmo perfil psicológico.
Outro fato que chama atenção é a falta de indicação das razões que levaram à conclusão do perito. O perito conclui, por exemplo, que o requerente apresenta “ausência de autocrítica”, mas os motivos de tal conclusão nunca são expostos no laudo.
O perito afirma “é isso”, empregando uma linguagem técnica, vazia de sentido e hermética, sem indicar no laudo os dados em que se baseou a sua investigação.Além do mais, os laudos não respeitam o contraditório, pois não indicam a metodologia empregada pelos expertos. Não se sabe se a avaliação se dá com base em uma mera entrevista, e qual sua duração (30min., 1h, etc), ou se a avaliação toma como base toda a vida carcerária do indivíduo, levando em consideração seu comportamento no cárcere, sua relação com os agentes penitenciários, com os demais encarcerados, suas relações familiares, etc. E mais: não se sabem sequer quais foram as perguntas formuladas ao encarcerado durante o exame. Tudo isso é kafkaniano!O que se vê amiúde é que o requerente “reprovado” pelos peritos é um indivíduo comum, que tem suas ambições e que não aceita frustrações, que busca aceitação, que não assume seus erros, que disfarça seus conflitos, que tem dificuldade de se relacionar com outros seres humanos. E só por ser um homem comum, imperfeito, falível, imaturo, angustiado, ele merece a prisão para sempre? Nesse caso, a prisão será a melhor “terapia” para o apenado? Se ele conta com o apoio familiar, tem bom comportamento carcerário, e não é um indivíduo perigoso ou um sociopata, não está ele apto à progressão de regime ainda sim? O que mais se exige de um ser humano normal?Bem por isso, os Tribunais têm admitido a concessão da progressão de regime e de livramento condicional apesar do laudo criminológico desfavorável:“Agravo em execução penal. No confronto entre laudos do Centro de Observação Criminológica – COC e a vida prisional, esta prepondera para reconhecimento de direitos do apenado. Agravo provido, para a progressão de regime carcerário” (TJRS – RJTJERGS 209/100).“Indispensável é a importância do saber técnico especializado, quando se tratar de aferir aspectos íntimos e subjetivos da personalidade do sentenciado, em ordem à progressão de regime. O parecer da Comissão Técnica de Classificação, portanto, só sobrepõe-se à opinião do leigo; mas não é de bom exemplo superestimá-lo, em detrimento do sentenciado que não se mostre, de plano, desmerecedor do benefício. Não raro o prognostico sombrio quanto à recuperação do sentenciado cede à expectativa de que honre o voto de confiança que lhe depositou a Justiça e efetivamente se reeduque para o retorno à comunhão social.
Satisfeitos os requisitos da lei, e reconhecida a compatibilidade do condenado com o novo regime, não pode o Juiz negar-lhe a progressão (TACRSP – RJTACRIM 46/35).O fato de o interno não apresentar discurso e comportamento desejado pelos peritos jamais poderia ser invocado como obstáculo à concessão da medida pleiteada, pois não cabe ao Estado violar a consciência do apenado, forçando-o a “introjetar valores” e a modificar a sua personalidade, tudo para se tornar um “bom cidadão”.
Tampouco cabe ao Estado obrigar o sentenciado a admitir sua responsabilidade no crime pelo qual foi condenado, visto que tal circunstância pouca relevância tem para o cumprimento adequado da pena, além do que isso pode servir como tática de intimidação contra aquele que está em posição de subserviência.
A aceitação da expiação do “pecado” e a reconciliação são questões de foro íntimo e, como tais, não devem ser esmiuçadas pelos órgãos punitivos estatais.De qualquer modo, mesmo que ao Estado fosse lícita tal atividade, como poderia o encarcerado não apresentar ”comportamento desviado” se ele se encontra encarcerado, afastado da sociedade dos gentios, e vive em um ambiente cruel em que vigoram outras leis, outra moral?
O papel do Estado na execução penal é o de favorecer a reinserção social do condenado, promovendo a sua alfabetização e profissionalização (o que não o faz adequadamente, diga-se), e não o de impor valores ao apenado (função já dissecada por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir), de modo a extirpar sua individualidade e torná-lo um indivíduo “dócil”, sem paixões, ou seja, um ser autômato e produtivo, bem ao gosto da sociedade de consumo.Tal atitude, a de impor valores morais ao condenado, fere o princípio da secularização do Direito Penal, dado que valores extrajurídicos não podem ser invocados para fundamentar a gravidade da pena, ou, neste caso, a sua quase perpetuidade.
Nesse sentido, a jurisprudência endossa a tese defensiva:“Agravo de execução. Progressão. Supervalorização do fato delituoso, de que resultou condenação, exigindo os peritos que o apenado assuma o delito e se arrependa.
O Estado não está legitimado a modificar a personalidade do agente e a prisão não é ‘lavagem cerebral’. A aferição do mérito do condenado se funda em sua conduta presente. Divergência entre as visões jurídico-penal e psiquiátrica. Agravo provido, para deferir progressão” (TJRS – RJTJERGS 197/66).“Agravo de execução. Progressão e serviço externo. Condições pessoais – O arrependimento do condenado refoge aos objetivos da pena.
Ao Estado incumbe propiciar ao apenado condições de reinserção social, sem violentar a sua consciência pessoal. O estado social de direito intervém para proteger (a sociedade) e promover (o individuo condenado), fazendo da execução ‘treinamento’ para a liberdade. E o estado democrático de direito preconiza o direito à divergência (pluralismo).
A progressão ao regime semi-aberto não implica soltura do apenado. Agravo provido” (TJRS – RJTJERGS).Não é demais lembrar que, em outros tempos, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, seguindo a vanguarda da Criminologia e atentos à falácia dos discursos e dos aparatos técnico-psicológicos sobre o comportamento do apenado (ou o biopoder, nos termos de Foucault), já dispensaram, com base na Lei n° 10.792/03 (que alterou o art. 112 da Lei de Execução Penal), a exigência do malfadado “Exame Criminológico” para a concessão das medidas da execução penal. Vejamos os seguintes julgados:“Agravo em Execução. Cumprimento da pena privativa de liberdade. Progressão de regime fechado para semi-aberto. Bom comportamento carcerário atestado pelo diretor do estabelecimento.
Não há que se levar em conta a vida pregressa do réu. Desnecessidade de realização do exame criminológico graças à nova redação do art. 112 da LEP dada pela Lei n° 10.792/03. Satisfeitos os requisitos legais, nasce o direito à progressão. Improvimento do agravo interposto pelo Ministério Público” (Ag. Ex. 473.684-7-00 – 3ª Cam. Crim. – Rel. Junqueira Sangirardi – j. 14.06.05).“Execução penal. Progressão de regime. Requisitos do art. 112, da LEP. A partir da Lei n° 10.792/03, à progressão de regime, dois são os requisitos: bom comportamento carcerário e cumprimento de 1/6 da pena.
Nada mais pode ser exigido, sob pena de violar a legalidade em prejuízo do cidadão. Atendidos os requisitos, o apenado faz jus à concessão da progressão de regime – direito subjetivo público. À unanimidade, deram provimento” (Ag. Ex. 70013715297 – 5ª Câm. Crim., Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 08.02.06).O fato é que a avaliação técnica, se fosse o caso de mantê-la, deveria ser feita precipuamente antes de se iniciar a execução da pena (art. 34, caput, Código Penal), no sentido de individualizar o tratamento penitenciário a cada preso, ou seja, com o fim de identificar o melhor modo de execução da pena em relação às peculiaridades comportamentais e emocionais de cada sentenciado. Ora, se o sentenciado apresenta desvio psicológico ou insanidade psíquica, tal circunstância deve ser diagnosticada no início da execução da pena, de sorte a permitir que durante o cumprimento da reprimenda ele seja acompanhado por profissionais que possam prepará-lo para a liberdade. Mas, infelizmente, no sistema atual não é o que ocorre.
Na verdade, a execução penal, tal como ela é feita atualmente no Brasil, viola a suposta finalidade terapêutica da pena privativa de liberdade, afrontando a Lei de Execuções Penais e o art. 5º(6), do Pacto de San José da Costa Rica de 1969, ratificado pelo Brasil.Agora, o que não se pode é exigir que, depois de anos encarcerado nas masmorras do sistema penitenciário nacional, sujeito a toda sorte de infortúnios (brigas entre os internos, luta pela sobrevivência em razão da “lei do mais forte”, rebeliões, truculência dos agentes policiais, marginalização, desumanização, punições sumárias, submissão à barbárie dos Comandos, etc), o sentenciado apresente discurso lúcido e cortês, sanidade psíquica e comportamento nobre. Em outras palavras, exigir que o sentenciado torne-se um cavalheiro, depois de anos encarcerado, é desconhecer o pandemônio que é o sistema prisional brasileiro.
A propósito, a exposição de motivos do Código Penal se refere à prisão como um método de “tratamento” penal muitas vezes inadequado e pernicioso, que pode trazer “conseqüências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho”.
A partir dessa perspectiva, Michel Foucault conclui que “a detenção provoca a reincidência, depois de sair da prisão, se têm mais chances que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos. (...) A prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos” (Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 221).
No mesmo sentido, ensina Winfried Hassemer que“as penas privativas de liberdade estigmatizam e desabituam (entwöhnt). Elas mantêm os presos isolados não só em um espaço, mas também socialmente.’Educação para a liberdade através da privação da liberdade’ não é apenas o título bem elaborado de uma publicação, mas expressa o evidente paradoxo das modernas teoria das da pena. O preso é privado amplamente dos seus contatos íntimos e sociais.
Ele é levado a um ambiente social que o mantém afastado dos problemas, nos quais ele fracassou fora do estabelecimento (que lhe criavam também novos problemas). Ele desaprende as técnicas sociais de convívio e de aprovação (e inclusive aprende outras). E ao término do tempo da pena ele volta, desabituado e estigmatizado a um mundo que, fora dos muros da prisão, se desenvolveu de acordo com as suas próprias leis”. O autor prossegue: “a execução do tratamento encontra-se sob a inconveniente condição de que o preso deve ‘expiar’ durante este tempo (ou uma parte deste tempo), sem que ele possa compreender a produtividade deste tempo, de modo que a resistência e o endurecimento pelo menos colocam em grave perigo o êxito do tratamento”. E finaliza com maestria: “O Direito Penal tem a tarefa de limitar o poder, que seja ele praticado com o melhor intuito terapêutico” (em Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 378 e 381).Além do que foi exposto até aqui, é de se registrar que o malfadado exame não tem mais previsão em lei desde a entrada em vigor da Lei 10.792/03, que alterou a Lei de Execução Penal.
Assim, os juízos de execução penal do país exigem requisito não mais contemplado pela lei para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional, o que viola o princípio-mor do Direito Penal: o da legalidade.Se não há previsão em lei, como pode o juiz exigir que o requerente se submeta ao exame criminológico? Diz-se que este é facultativo, porém nada diz a lei sobre tal facultatividade. Na verdade, a lei é omissa. Ora, se é omissa, considera-se que o exame não é mais exigível (interpretação mais favorável ao réu e mais harmônica com o princípio da legalidade), e em que pese o teor da súmula vinculante n° 26 do Supremo Tribunal Federal e da súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça.
Na verdade, a lei antiga, antes da alteração trazida pela Lei 10.792/03, já previa a facultatividade do exame criminológico. Então, se o ordenamento outrora vigente previa a facultatividade do exame e a lei nova retirou por completo qualquer menção da Lei de Execução Penal ao referido laudo não faz sentido dizer que a facultatividade ainda persiste. Se o legislador o extirpou da lei, entende-se que o exame não é mais requisito, obrigatório ou facultativo, para a progressão de regime ou do livramento condicional.Pela mesma ótica, decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em julgamento paradigmático:“A Lei 10.782/2003, reconhecendo tudo isto, substituiu o parágrafo único do art. 112 da LEP por dois outros parágrafos sem aludir, contudo, ao referido exame.
A ausência de previsão expressa sobre a própria existência do exame criminológico quando da apreciação do requerimento de progressão de regime impede, por conta do princípio da legalidade, que o magistrado assim o exija” (HC 2007.059.06898 – 7ª C. Crim. – Des. Rel. Geraldo Prado –j. 19.12.07).De qualquer maneira, mesmo que se entenda pela suposta facultatividade do exame criminológico (tese que se percebe desprovida de qualquer base jurídico-científica e dirigida por uma política criminal que se destina à segregação a todo custo de marginalizados), a exigência do citado exame “viola o princípio da laicização do Direito, defesa contra a tendência expansionista do Estado de se imiscuir nas liberdades de escolha e de autodeterminação dos indivíduos” (HC 2007.059.06898 – TJRJ).
Tendo em vista esse panorama é que o exame criminológico, requisito não mais exigido por lei (mas ainda exigido pelos juízes!), não passa de uma farsa a serviço do expansionismo penal.Referências bibliográficas

COSTA, Álvaro Mayrink da. Exame criminológico, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1989.FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998.WINFRIED, Hassemer. Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005
Fonte: Conjur
Por José Carlos Portella JrPor José Carlos Portella Jr

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