A capacidade de o sistema
sancionatório resolver os problemas que lhe são destinados depende muito das
investigações empíricas sobre os instrumentos e a forma de utilizá-los. É a
Criminologia que, fundamentalmente, fornece base para as investigações acerca
da melhor forma de resguardar a sociedade contra a violência
SUMÁRIO
1. Política criminal, Criminologia e Direito penal.
2.O direito de punir do Estado.
3. As finalidades do Direito penal.
4. A eficácia do Direito penal e sua função simbólica.
5. Expectativas sociais e eficácia das funções do Direito penal.
6. Efeitos criminógenos da criminalização
2.O direito de punir do Estado.
3. As finalidades do Direito penal.
4. A eficácia do Direito penal e sua função simbólica.
5. Expectativas sociais e eficácia das funções do Direito penal.
6. Efeitos criminógenos da criminalização
1. Política criminal, Criminologia e Direito penal
A
disciplina Política criminal muito raramente é estudada nos cursos de
graduação, muito embora, a todo tempo, seja feita menção a seus postulados, sem
que se tenha plena consciência de todas as abordagens que estão inseridas no
seu universo.
É
bastante frequente estabelecerem-se confusões entre Política criminal e
Criminologia ou mesmo entre elas e o Direito penal (principalmente no que diz
respeito à Dogmática jurídico-penal).
A
Criminologia possui uma dimensão e uma estrutura científica próprias,
informadoras das estratégias que a Política Criminal estabelece para o controle
(“combate”) da criminalidade.
Importante
ressaltar, desde logo, que o ramo repressivo do Direito não é o único meio
recomendado pela Política criminal para a diminuição da violência. Inúmeras
outras medidas de cunho político podem ser adotadas a partir das conclusões da
Política criminal. Investimentos em programas como o Escola Aberta, por exemplo,
podem ser utilizados, eficazmente, nessa difícil tarefa.
É o que
ocorreu, também, no ano de 2003, quando o Ministério da Justiça traçou seu
plano de combate à lavagem de capitais. Para tanto, foram propostos, durante a
reunião do Gabinete de Gestão Integrada (GGI) de Prevenção e Combate à Lavagem
de Dinheiro, ocorrida em 16/12/2003, seis objetivos centrais e trinta e duas
metas. Como se pode ver abaixo, dentre os objetivos, vários não possuem
natureza repressivo-penal :
Algumas das ações acima frutificaram, podendo-se citar o
Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro – LAB-LD, criado pela
Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), do Ministério da Justiça, que conseguiu
bloquear R$ 100 milhões de pessoas suspeitas de pertencer a organizações
criminosas.
Instituída em 2003, a Estratégia Nacional
de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) tem por objetivo
aprofundar a coordenação dos agentes governamentais envolvidos nas diversas
etapas relacionadas à prevenção e ao combate a crimes de lavagem de dinheiro e
(a partir de 2007) de corrupção. De lá para cá, a cada ano, novas metas são
propostas.
A
implantação ou incrementação de medidas de cunho não repressivo, isoladas ou
cumulativamente com ações de caráter penal, são de importância capital.
Quando,
entretanto, a opção política for no sentido da utilização do arsenal punitivo,
não se pode olvidar a moderna concepção das Ciências criminais, caracterizada
pelo modelo integrado, tal como foi sugerido por VON LISZT no final do século
XIX. A integração do Direito penal (e da sua ciência, a Dogmática
jurídico-penal) com a Criminologia e com a Política criminal é inevitável. Cada
um desses seguimentos, entretanto, mantém a sua autonomia. De fato, cada uma
das áreas mencionadas representa momentos diversos do fenômeno criminal:
Aos três
momentos acima mencionados juntam-se outros dois, o processual e o execucional,
completando os cinco segmentos que compõem as Ciências criminais. No presente
artigo cuidaremos das relações entre a Política criminal, a Criminologia e o
Direito penal (a Dogmática jurídico-penal).
O
criminólogo estuda o fenômeno criminoso, fornecendo dados que a Política criminal
transforma, às vezes, em reivindicações de alteração ou mesmo de elaboração da
legislação penal; a ciência do Direito penal normativiza essas reivindicações
que passam a ter valor jurídico coativo; o processualista cuida da aplicação do
ius puniendi de acordo com o devido processo legal; na fase executiva torna-se
realidade a ameaça penal.
Concernentemente
à Política criminal, pode-se dizer, com JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, que o tempo
atual é o da Política criminal. “É das suas proposições ou mandamentos fundamentais,
encontrados no campo de projeção dos problemas jurídicos sobre o contexto mais
amplo da política social, que será lícito esperar um auxílio decisivo no
domínio desse flagelo das sociedades atuais que é o crime.”
A
Política criminal é vista como “conjunto sistemático de princípios e regras
através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das
infrações penais.” Para Claus Roxin “a questão pertinente a como devemos
proceder quando há infringência das regras básicas de convivência social,
causando danos ou pondo em perigo os indivíduos ou a sociedade, conforma o
objeto criminal”.
A
capacidade de o sistema sancionatório resolver os problemas que lhe são
destinados depende muito das investigações empíricas sobre os instrumentos e a forma
de utilizá-los. É a Criminologia que, fundamentalmente, fornece base para as
investigações acerca da melhor forma de resguardar a sociedade contra a
violência, sendo, portanto, de capital importância as suas conclusões. Como
“ciência empírica do delito, [a Criminologia] traz os imprescindíveis dados
acerca do fenômeno criminal e das suas diversas instâncias (delinquente,
vítima, aparatos do controle social)”.
Também é
com base nos estudos criminológicos que se poderá concluir pela redução, ou
não, dos efeitos danosos do Direito penal, ou seja, de seu quantun de
violência, sem que isso implique perda de efeito integrador, com incremento da
violência social, aumentando a taxa de delitos ou de fenômenos de vingança
privada.
A
Política criminal, dentro desse contexto, depende do conhecimento empírico da
criminalidade, dos seus níveis e das suas causas (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS),
objetos que são da Criminologia. É sua a tarefa de transformação das
teorizações da Criminologia em opções e estratégias de controle da
criminalidade a serem utilizadas pelo Estado.
A moderna
Política criminal (de base criminológica), “opera mediante a valoração (desde
concretas perspectivas jurídico-políticas) dos dados empíricos recolhidos pela
Criminologia”. É com fundamento em tais valorações que se deve construir,
aplicar, elaborar e criticar o Direito penal. A Política criminal deve operar
tanto no plano do direito a constituir como no do direito constituído.
E, mais
do que isso, quando a Criminologia alarga seu objeto de estudo para abranger a
totalidade do sistema de aplicação da justiça penal (e não mais somente o
sistema penal), preocupações com eventuais efeitos criminógenos da própria lei
penal também passam a ser objeto da Política criminal, criando, com isso,
estratégias que vão além da intervenção penal, sendo exemplo disso os
movimentos de descriminalização, desjudicialização, diversificação etc.
No dizer
de FIGUEIREDO DIAS, a Política criminal constitui “a pedra angular de todo o
discurso legal-social da criminalização-descriminalização.”
Vê-se,
assim, que os postulados político-criminais devem ser levados em consideração
desde o momento anterior à própria existência do Direito penal (processo
legislativo), passando pela fase judicial e executorial, e, mesmo, chegando ao
momento posterior, ou seja, quando são recolhidas as conclusões acerca de
eventuais efeitos criminógenos de dada tipificação penal, para o fim de propor
outros e mais aprimorados encaminhamentos.
A
perspectiva primeira, defendida por V. Liszt, na qual Política criminal e
Direito penal eram vistos de forma antagônica , acha-se hoje superada pela nova
concepção de CLAUS ROXIN, para quem “as valorações político-criminais
fundamentam o sistema do Direito penal e a interpretação de suas categorias.”
No mesmo
sentido é o posicionamento de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. Para o autor, a
Dogmática jurídico-penal não pode evoluir sem levar em conta o trabalho
“prévio” de índole criminológica, bem como sem uma mediação político-criminal
que lance luz sobre as finalidades e os efeitos que se aponta à (e se esperam
da) aplicação do Direito penal”.
FIGUEIREDO
DIAS e ROXIN, entretanto, divergem quanto ao grau de dependência existente
entre Direito penal (e a Dogmática jurídico-penal) e Política criminal.
ROXIN
parte da ideia de aproximação da Dogmática jurídico-penal com a Política
criminal como forma de realização do Direito penal. De acordo com o autor, o
Direito penal constitui “a forma por intermédio da qual as proposições de fins
político-criminal se vazam no modus da validade jurídica”. Decorrentemente, ele
dissolve as fronteiras entre Dogmática jurídico-penal e Política criminal,
criando uma “unidade sistemática”.
FIGUEIREDO
DIAS, diversamente, menciona não uma completa “unidade sistemática” entre elas,
mas, sim, busca uma otimização da colaboração entre ambas, o que também se dá
com relação à Criminologia. O autor fala em “mútuo relacionamento”, bem como em
“unidade cooperativa ou funcional”, ou, quando cita ZIPF, em “otimização da
colaboração.”
Acima de
tal discussão, fato é que tanto a Política criminal quanto o Direito penal
devem ser estruturados a partir dos postulados constitucionais. É aqui que
entram em cena os princípios constitucionais-penais, explícitos ou implícitos.
Na segunda categoria (princípios constitucionais implícitos), incluem-se todos
aqueles que decorrem
(a) do
regime político conformado constitucionalmente e
(b) dos
princípios expressamente adotados pela Constituição, bem como
(C) dos
tratados internacionais em que o Brasil seja parte (§ 2º, art. 5º, CF).
2. O direito de punir do Estado
O Direito
penal, em sentido subjetivo (ius puniendi), é entendido como potestade punitiva
do Estado, traduzida como poder de cominar, aplicar e executar as penas ; o
conjunto de normas primárias e secundárias que lhe dá feição e, de certa forma,
conforma o Direito penal (ius poenale) constitui seu outro sentido, o objetivo.
O primeiro sentido possui caráter eminentemente político, enquanto o segundo
representa o seu aspecto normativo.
Esquematicamente:
Antecede
a verificação sobre a legitimidade do Direito penal outra análise, permeada por
significativa discussão acerca da crise pela qual passa o Direito penal
moderno. A partir do Iluminismo este ramo do Direito recebeu uma nova e
transformadora feição. Em que pese o longo tempo já transcorrido (mais de
duzentos anos), esta particular forma de concepção do Direito penal ainda não
se consolidou em um modelo consensualmente aceito. Mesmo que se registrem
momentos de bonança, certo é que sucessivas crises, com diferentes elementos,
tiveram lugar. O ritmo intenso de mudanças pelas quais passa a sociedade desde
então é o responsável preponderante pela não estabilização de um consenso sobre
o melhor estatuto de convivência, motivo pelo qual o Direito, regulador de
condutas, também vem oscilando com intensa frequência.
Essa é
uma crise de legitimação: questiona-se a justificação do recurso, por parte do
Estado, ao seu instrumento mais poderoso — o Direito penal. Nesse sentido,
algumas questões exigem respostas. Elas podem ser englobadas nos seguintes
questionamentos :
É o
próprio Direito penal que está sendo colocado à prova, sob o aspecto,
principalmente, de sua autêntica utilidade social.
Juntamente
com esta crise subsiste outra, na qual a validade científica deste ramo do
Direito é analisada. E as duas, a do Direito penal e a da ciência que lhe
justifica a existência, são paralelas.
No que
tange a tais crises, percebe-se, sem esforço, dois movimentos que se repulsam
convivendo concomitantemente em um mesmo espaço social. Em algumas ocasiões,
prima-se por uma legislação nitidamente simbólica , carregada de ceticismo em
relação ao ideal ressocializador, fazendo da pena uma função em si mesma, o que
a reconduz à ideia de castigo, desprezando o fato de o Direito penal ser
incapaz de exercer, por si só, o papel que se lhe atribui (de diminuição da
violência). De outro lado, vê-se, em ocasiões mais raras, a preocupação do
legislador, quando na sua tarefa criadora, com direitos e garantias do cidadão.
Nesse
sentido, também se veem movimentos, amparados juridicamente, em prol da menor
intervenção penal possível. Para tanto, vêm sendo criados instrumentos vários
para a redução da incidência do Direito penal (a obstaculização da ação penal
quando tenha ocorrido reparação do dano provocado pelo delito – sonegação
fiscal, cheque sem fundos – são exemplo).
Significativa,
ainda, a determinação contida na Lei 9.099/95, no sentido de exigir
representação para os casos de lesão corporal culposa e simples – art. 88 o
qual prevê: “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial,
dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais
leves e lesões culposas.”
Superados
os entendimentos que tratavam de vincular o Direito penal a legitimações
apriorísticas que lhe atribuíam a missão de “realização da justiça sobre a
terra”, a fonte da legitimação do Direito penal passou a se fixar no fato de
que sua presença na sociedade, mesmo que constitua um mal, provoca-o em
intensidade menor quando comparado àquele que trata de evitar (FERRAJOLI). É
desta perspectiva que se pode, com mais propriedade, chegar às finalidades que
um Estado Social e Democrático de Direito – como é o conformado pela nossa Constituição
– pode reservar ao Direito penal.
3. As finalidades do Direito penal
De acordo
com o afirmado no item “1”, a Política criminal encontra-se intimamente ligada
com as finalidades do Direito penal. Também foi dito que as feições do Direito
penal e da Política criminal são extraídas fundamentalmente das normativas
constitucionais.
A questão
que envolve as finalidades do Direito penal pode ser abordada por meio de três
diferentes perspectivas :
Somente a
terceira abordagem permite que se elabore uma teoria legitimadora do Direito
penal. É a partir dela que toda a construção normativo-penal deve ser
realizada.
Uma
análise, por exemplo, do Direito penal positivo brasileiro é incapaz de indicar
o marco teórico no qual se tenha baseado alguma teoria para os fins do Direito
penal, já que sobrevivem normatizações completamente distintas e
contraditórias, ou, mesmo, excludentes, em termos de ideologia jurídico-penal.
Primeiramente,
portanto, há que se conhecer as finalidades que deveriam ser cumpridas pelo
Direito penal em uma sociedade de constituição sociocultural determinada, para,
após, concluir-se pela coincidência, ou não, do direito positivo com estas
atribuições de fins.
Para tal,
faz-se necessária uma base teórico-crítica a instruir a conclusão acerca da
legitimidade do Direito penal. A Constituição, por representar o consenso
valorativo do grupo social, oferece um respeitável marco, que não somente deve
ser consultado, como, também, deve servir de guia ao legislador, ao intérprete,
ao aplicador e àquele que irá executar os comandos normativos.
Caracterizar
o Direito penal em termos de feição e finalidade tem sido tarefa que se
destaca, antes de tudo, pelas significativas controvérsias que desencadeia.
Isto traz, por via de consequência, discussões acerca da legitimidade
epistemológica, e propicia, também, que sejam criadas leis com conteúdos
ideológicos contrários, ao sabor do jogo de forças ao qual foi submetido
determinado desencontro de opiniões, com total desprezo por princípios já
universalmente consagrados.
Nos
países que consolidaram um modelo de Estado social e democrático de direito,
estes problemas encontram-se melhormente resolvidos. Também são quase
consensuais os fundamentos do Direito penal. Sua razão de ser é encontrada na
eterna busca pelo melhor viver do homem. Não se pode olvidar, por certo, que o
entendimento acerca das condições necessárias para se chegar ao fim colimado
vem se alterando e que cada vez alarga-se mais o seu rol, incluindo-se, hoje,
itens que até pouco tempo não frequentavam a pauta de reivindicações sociais,
como é o caso do direito ao meio ambiente sadio. A demanda, no entanto, sempre
foi pelo mesmo produto: satisfação do que esteja ao nível de melhor condição de
humanidade.
Constituem-se,
aliás, em objetivos do Estado brasileiro (art. 3º da Constituição Federal)
“construir uma sociedade livre, justa e solidária” (I), bem como “erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”
(III), além de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (IV).
O Direito
penal, como todo o ordenamento jurídico, evidentemente, deve se conformar a
esses objetivos.
Neste contexto, sobressai o propósito de proteção de
bens jurídicos relevantes 71ª
finalidade do Direito penal8,
entendidos como aqueles bens imprescindíveis para satisfazer as necessidades
fundamentais do indivíduo em sociedade.
A origem
da teoria do bem jurídico deve-se ao surgimento do Direito penal liberal
concebido pelo Iluminismo, a partir do qual a demarcação dos pressupostos para
a intervenção do Estado, além de ser restringida por aspectos formais
(princípio da taxatividade, por exemplo), passou, progressivamente, a assumir,
expressão de SILVA SÁNCHEZ, funções de autolimitação material.
A
utilização do Direito penal encontra-se justificada pela capacidade deste
instrumento do Estado de diminuir as cotas de violência inseridas nas relações
sociais, entendida como lesões graves que abalam substancialmente bens
jurídicos relevantes.
Mas não é
só. A ausência do Direito penal remeteria o controle da desviação a um
confronto de forças sociais, no qual sucumbiria o mais fraco e, por via de
consequência, em inúmeras ocasiões, a Justiça. O poder punitivo, portanto,
representa uma amarga necessidade, sem o qual a manutenção de uma convivência
minimamente pacífica e organizada não seria possível, ao menos no atual estágio
da civilização.
Desta forma, a violência das prováveis contrarreações
vingativas é substituída por outra monopolizada por meio de um sistema de
dissuasão e pela violência da pena em si. Daqui surge a necessidade de o Estado
proteger o indivíduo contra as reações sociais que o próprio crime desencadeia 72ª
finalidade do Direito penal8
Não obstante a importância de se proteger bens
jurídicos, bem como de se prevenir as reações informais, tais funções não são
suficientes para legitimar a intervenção punitiva. Um outro papel, também,
precisa ser atribuído ao Estado que se pretenda moderno: garantir a aplicação
dos princípios, direitos e garantias penais previstos na Carta 73ª
finalidade do Direito penal8
Tal
necessidade advém do fato de que o Direito penal, paradoxalmente, enquanto
representa o meio mais incisivo de que se vale o poder instituído para
assegurar a pacífica convivência entre os jurisdicionados, equivale, também,
àquele que mais restringe a liberdade e enfraquece os direitos de segurança e
de dignidade. Resta de suma importância, pois, que se busque estabelecer
rígidos critérios — representados pelo modelo garantista do Direito penal —
para a intervenção penal.
Esquematicamente,
têm-se as três finalidades do Direito penal:
No
concernente à primeira finalidade, aspectos ligados ao bem jurídico pertencem
às discussões acerca do merecimento de tutela penal, a qual, juntamente com as
categorias necessidade e adequação, compõem as etapas a serem analisadas pelo
legislador quando da sua tarefa de criminalização de condutas.
Quanto à
segunda finalidade, sua possibilidade de cumprimento encontra-se intimamente
ligada com as discussões a serem elaboradas nos itens 4 e 5 que serão vistos a
seguir (função simbólica do Direito penal correlacionada com as expectativas
sociais e com a sua eficácia).
A
terceira finalidade vincula-se ao Garantismo, o qual representa,
concomitantemente, uma bem desenvolvida proposta de Política criminal. Dentro
de tal perspectiva, ou seja, como Política criminal, o garantismo será
novamente abordado por ocasião das discussões sobre movimentos de Política
criminal.
Enquanto
o liberalismo focou, com prioridade, as garantias formais, o cada vez mais
ostensivo assentamento do ideário do Estado social propiciou uma readequação de
metas que, desde então, passou a ser permeada de realizações práticas de
garantias. É desta nova concepção de Estado que surge a proposta garantista.
Esta
tendência de Política criminal vem ganhando espaços e conteúdos, a ponto de
JESUS-MARÍA SILVA SÁNCHEZ afirmar:
o
garantismo que, partindo da proteção da sociedade através da prevenção geral de
delitos, procede a sublinhar as exigências formais de segurança jurídica,
proporcionalidade, dentre outros, e acolhe, por sua vez, as tendências
humanizadoras, expressa o estado até agora mais evoluído de desenvolvimento das
atitudes político-criminais básicas, a síntese dos esforços em prol de um
melhor Direito penal, e constitui a plataforma necessária para abordar de modo
realista e progressista os problemas teóricos e práticos do Direito penal.
Mais do
que proposta de política-criminal, o Garantismo, como dito, representa uma
finalidade a ser desenvolvida pelo Direito penal. Esta preocupação — garantia
do indivíduo contra a arbitrariedade do Estado — não provém, entretanto, do
consentimento da maioria.
Como já
afirmado anteriormente, inúmeros são os setores da sociedade que ainda não
amadureceram para a importância de garantias de direitos individuais. É comum o
discurso de que “os direitos humanos preocupam-se somente com bandidos”, ou,
pior, que “bandido bom é bandido morto”. Também é bem conhecida uma outra
frase, melhormente elaborada: “Direitos humanos são para humanos direitos.”
A
terceira finalidade, assim, parece não possuir feição democrática. Por tal
razão ela deve ser considerada a partir de fundamentos mais sofisticados. Sua
atribuição é eminentemente garantista. “Garantismo, com efeito, significa
precisamente tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação,
ainda que contra os interesses da maioria, é o fim justificador do Direito
penal: a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e dos
castigos, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a
dignidade da pessoa do imputado e, por conseguinte, a garantia de sua liberdade
mediante o respeito, também, de sua verdade”. Tal entendimento decorre da
concepção de Estado democrático de direito.
A moderna
concepção da finalidade do Direito penal caracteriza-se, portanto, pelo papel
de destaque atribuído às considerações garantistas e encontra-se bastante
distante da percepção real de como funciona o Direito penal, já que uma
verificação mais percuciente da história obriga a perceber que serviu — e
permanece servindo —, o Direito penal, de instrumento de dominação. Seus mecanismos,
por permitirem interferências das mais variadas ordens — o que deveria ser
visto como qualidade, por propiciarem o processo de diálogo entre direito e
sociedade —, acabaram se transformando em instrumentos de grupos hegemônicos.
Estes interesses excludentes estabelecem-se desde o processo legislativo,
olvidando os da grande parcela de excluídos, aos quais se faz sobrar, tão só, a
submissão à lei.
É
bastante significativa, bem se sabe, a falta de sintonia entre as missões ou
finalidades que o Direito penal deveria cumprir e as funções que, efetivamente,
por ele são realizadas. A síntese atual, portanto, implica esta contradição.
De toda
forma, convém reforçar que não é possível a garantia de um Direito penal
absolutamente justo e válido. De acordo com FERRAJOLI, a função do princípio da
separação entre direito e moral, acrescida à relatividade dos juízos éticos
“derivada da autonomia de cada consciência e do princípio meta-ético da
tolerância, impedem que um sistema de proibições penais possa proclamar-se,
jamais, objetivamente justo ou integralmente justificado.”
Para o
autor não são concebíveis sistemas jurídico-penais perfeitos, sendo, como são,
irredutíveis, tanto a autonomia e a pluralidade dos juízos ético-políticos
sobre sua imperfeição, como a relatividade histórica e política das opiniões
legislativas sobre o que se deve proibir. Nem sequer o fato de que estas opções
sejam as da maioria basta para garantir sua justiça, sua moralidade, senão
somente sua concordância com os valores e interesses dominantes. A justiça,
como a moral, não é uma questão de maiorias. Pelo contrário, ‘onde quer que
haja uma classe dominante — e são palavras não de MARX, senão de JOHN STUART
MILL —, uma grande parte da moralidade do país emana de seus interesses e de seus
sentimentos de classe superior. E já BECCARIA havia afirmado que ‘a maior parte
das leis não são mais que privilégios, isto é, um tributo que todos pagam para
a comodidade de alguns’.
Afirma,
ainda, FERRAJOLI que qualquer pretensão de haver realizado a justiça perfeita,
“não somente é ilusória, senão signo da mais perigosa das imperfeições: a
vocação totalitária.”
Sendo,
pois, a lei uma produção histórica decorrente das relações de força que lhe são
incidentes, ela será a lei possível, não a lei perfeita, talvez nem mesmo a
desejável. No máximo, resta o esforço de fazer do possível o desejável.
Essa
distância entre função desejável e a real serventia do Direito penal é,
frequentemente, encoberta por processos dissimulados, como se verá no próximo
item.
4. A eficácia do Direito penal e sua função simbólica
Além das
finalidades legítimas, anteriormente analisadas, há funções não autorizadas
desenvolvidas, de fato, pelo Direito penal. Pode-se afirmar, ainda, que algumas
das funções desempenhadas são manifestas e outras são latentes. As funções
manifestas coincidem com as condições objetivas de realização da norma, ou
seja, as que a própria norma alcança em sua formulação. Com as funções
latentes, o que se dá é que a norma encobre a sua real significação, desenvolvendo
efeitos distantes daqueles deixados a descoberto. Estas circunstâncias geram um
Direito penal chamado simbólico, [decorrendo que] as funções latentes
predominem sobre as manifestas: do qual se pode esperar que realize, através da
norma e de sua aplicação, objetivos outros que não os descritos na norma.
Um Estado
social e democrático de direito não pode se estabelecer a partir da função
simbólica exercida pelo Direito penal, embora não se possa negar sua
existência, “que tem lugar não na realidade exterior (posto que não se
aplicam), senão na mente dos políticos e dos eleitores” , produzindo a
impressão de que se as circunstâncias estão sob controle.
O que
importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranquilidade na opinião
pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com
as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais,
incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais
opções representem perspectivas de mudança do quadro que determinou a alteração
(ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão de que soluções foram
encaminhadas.
É grande
a importância que os signos e símbolos possuem nas comunidades humanas, fazendo
com que um preceito penal de caráter simbólico repercuta em efeitos sociais. O
elemento simbólico das manifestações da lei penal é um dado de realidade que,
no entanto, implica sério prejuízo social, quando se transforma em função a ser
incrementada pelo Estado, porque não é verdade – insiste-se – que o Direito
penal, isoladamente, possa alcançar o seu declarado objetivo, que é o de
proteger a sociedade.
Este ramo
do direito, como já dito, é somente um ao lado de tantos outros instrumentos de
que se serve (ou deveria se servir) o Estado para perseguir a missão
mencionada. Os esforços da administração pública não se encerram no Direito
penal. Outros meios de controle social formal ou informal devem vir em socorro
da sociedade (e do indivíduo, consequentemente), para, mediante uma conjunção
de esforços, propiciarem-se caminhos conducentes a perspectivas de solução,
relativamente ao problema apresentado.
Há quem
entenda que o Direito penal, quando opera de modo exclusivamente simbólico,
perde a confiabilidade, prejudicando o cumprimento de suas finalidades. É neste
sentido a lição de WINFRIED HASSEMER, para quem um Direito penal simbólico que
ceda suas funções manifestas em favor das latentes trai os princípios de um
Direito penal liberal, especialmente o princípio de proteção de bens jurídicos
e mina a confiança da população na administração da justiça.
Isto
porque o agir alicerçado na função meramente simbólica de alguns preceitos
impediria a atuação do Direito penal no sentido de prevenir a realização de
comportamentos penalmente ilícitos e por meio da qual as leis poderiam influir
(por intermédio de mandatos ou de proibições, bem como por meio da sanção
correspondente à ação praticada) sobre procedimentos de seus destinatários,
buscando demovê-los de praticar certo comportamento (prevenção geral negativa),
ou motivando-os a se comportar de acordo com a norma (prevenção geral
positiva).
Deve ser
dito que os efeitos intimidatórios do Direito penal têm sido empiricamente
contestados por não produzirem, em toda a sua extensão, as conseqüências que
deles se espera. Entretanto, o Direito penal pode exercer funções de integração
social geral, ou, dependendo do caso, de alguns grupos sociais.
Ilustrativo
a este respeito o entendimento de JESÚS-MARÍA SILVA SANCHÉZ, para quem
agravações de uma determinada pena em cinco anos, que, a partir da perspectiva
intimidatória (…), devem considerar completamente irracionais, podem
tranquilizar a sociedade em geral, ou certos grupos afetados ou especialmente
conscientizados do problema, e contribuir a restabelecer sua confiança no
ordenamento jurídico. Ademais, a promulgação de um novo preceito penal, por
meramente simbólico que este seja, pode despertar na cidadania a consciência
acerca da importância do bem jurídico protegido, produzindo uma espécie de
‘assunção’ do mesmo, isto é, uma integração.
O que não
se pode, entretanto, segundo lição ainda de SILVA SANCHÉZ, é cometer o equívoco
de supervalorar o aspecto simbólico. Isto porque uma norma nova ou o incremento
de uma já existente, caso não se mostre eficaz, ou na hipótese de não ser
aplicada, retira do ordenamento toda confiança que a população nele depositou.
Desta forma, a função simbólica, quando absolutizada, é rechaçável, pois, em
curto prazo, cumpre funções educativas e promocionais, e, em prazo mais
dilatado, redunda, inclusive, na aludida perda de confiança. Também não pode
deixar de ser dito que um aumento desmesurado da pena com propósitos
intimidatórios não só atesta contra o princípio da proporcionalidade; traz
também a grave consequência de gerar na sociedade um sentimento de injustiça, o
que obstrui o processo de adesão social da norma.
Referindo-se
a este tema, FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO esclarece que o problema não reside na
questão de ser ou não benevolente com o crime (ninguém razoavelmente poderia
sê-lo), mas de saber como contê-lo dentro de limites socialmente toleráveis, de
modo sério e verdadeiramente eficiente. Sem retóricas que a nada têm conduzido.
Sem leis que ficam no papel e não são executadas. (…) Por último, sem penas
eternas, postas em confronto com a duração média da vida humana, que tornem
irrealizáveis a disciplina nos presídios e o trabalho do Estado em prol da
emenda do delinquente.
Outro
malefício ligado a esta situação é representado pelo fato de que a articulação
de uma aparência de eficácia, fundada em medidas fáceis de política criminal
destinada a acalmar uma demanda social, desobriga o Estado de compor programas
estruturais de política-social. Ademais, a mera promulgação de normas, se
atende a objetivos simbólicos – daí a profusão com que se as edita – não
responde às exigências práticas, cujos meios são insuficientes, ou mesmo
inexistentes.
É ao
poder legislativo que pertence a construção de um outro Direito, mas é ao poder
judiciário que cabe a tarefa de velar pela aplicação destas novas tendências de
Política criminal, e de fulminar, atribuindo-lhe a pecha de inconstitucional,
toda e qualquer normativa elaborada em desconsideração aos parâmetros
construídos pela Carta – mesmo que assim agindo possa descontentar a opinião
pública.
Sem que os
esforços convirjam em prol dos princípios que devem nortear o Direito penal de
um Estado social e democrático de direito, não se contemplarão as
reivindicações que ora se apresentam. Enquanto o móvel da elaboração da lei
continuar sendo o sensacionalismo ou a comoção social que determinados fatos
causam, e até que se desmistifique o entendimento de que a lei penal é
instrumento de eficácia garantida para o problema da criminalidade,
avançar-se-á pouco, ou, não é improvável, haverá retrocesso em relação a muitas
conquistas granjeadas mediante o histórico combate daqueles que, insurgindo-se
contra a falta de segurança jurídica, o tratamento desigual, a inutilidade da
severidade da pena e a sua desumana execução, buscaram formas menos injustas de
conceber, declarar e aplicar o direito. Ou se aproxima a utilização do Direito
penal às suas finalidades legítimas, ou, em casos bastante frequentes,
assistir-se-á a uma “vitória de Pirro”.
As
expectativas sociais, indubitavelmente, devem ser levadas em consideração
quando da elaboração do Direito penal. Entretanto, quando o assunto é o
encaminhamento de soluções, elas devem vir temperadas por estudos científicos
acerca das consequências das medidas propostas. O saber, já se disse, quando o
tema subordina-se ao ramo da Política criminal, deve ser calcado nas conclusões
da Criminologia.
Não
obstante, não se pode descurar que as expectativas sociais — ainda que com os
adequados atendimentos — têm elevada importância para a eficácia, ou não, das
legítimas funções desenvolvidas pelo Direito penal, como se verá a seguir.
5. Expectativas sociais e concretização das finalidades do Direito
penal
Há um
enlace evidente entre relevância do bem jurídico e eficácia da norma. Quanto
mais próximo da sociedade estiver o valor que o bem jurídico expressa, mais
facilmente o destinatário da
norma
penal poderá respeitá-la. Pode-se dizer que ela terá mais legitimidade.
A
impossibilidade de assimilar o valor do bem jurídico inquina a motivação
conforme a prescrição normativa e é fator de enfraquecimento da finalidade de
proteção de bens jurídicos. Este processo de motivação opera como um limite
desta finalidade, visto que a norma não pode pretender mais, pois está afastada
de qualquer legitimidade a atuação penal que busque a adesão interna do
indivíduo.
O grau de
disponibilidade do sujeito a respeito do bem jurídico protegido reflete
diretamente no processo de adesão social da norma, o que é facilitado quando a
determinação nela contida é precedida ou acompanhada de uma função motivadora a
ser realizada por outras instâncias de controle social (incluindo-se as
extrajurídicas).
Como
observa GONZALO D. FERNÁNDEZ, “o controle normativo-coativo próprio do Direito
penal é um sub-rogado de outros sistemas de controle, ainda informais, que
orientam as decisões valorativas e operam sobre a motivação individual na base
da persuasão.”
Por outro
lado, voltando-se à gênese das normas, analisando o processo de incriminação
primária, percebe-se, como já dito anteriormente, que elas elegem bens
jurídicos e instituem proibições correlativas, axiologicamente consensuadas
pelos setores dominantes da sociedade, os quais identificam nesses bens
jurídicos selecionados pela lei penal autênticos valores hegemônicos.
A questão
relevante, nestes casos, refere-se à conhecida distância entre os bens
valorados penalmente e os destinatários da norma, quando o processo de
incriminação primária é calcado em proibições que traduzem valores oriundos de
setores hegemônicos, numericamente bastante inferiores, da sociedade.
Este
intervalo, entretanto, é encurtado por processos de dominação que, a serviço de
grupos privilegiados, implantam nas classes não-hegemônicas valores que não
lhes pertencem, mas são feitos parecer seus. “Remanesce que as classes
dominadas acabam sustentando a ordem estabelecida e dando combate contra os
próprios interesses, persuadidas de que estão a defender a sua causa e a melhor
causa.”
O bem
jurídico-penal adquire foros de importância sobrelevada quando do
estabelecimento da função de motivação do Direito penal. Quanto mais próximos
os valores albergados pela lei incriminadora estiverem da sociedade, melhor se
perfectibilizará a função aludida. A sociedade precisa sentir como necessário,
ou, mais do que isto, imprescindível o bem jurídico que o Direito penal está
pretendendo deixar a salvo. A inexistência de tal sintonia pode ter diferentes
causas. Dentre elas, destaca-se:
1. a
conduta criminalizada já não mais atenta contra os valores sociais
2. a
consciência acerca da importância do bem jurídico que a lei penal visa a
proteger ainda não foi percebida pela sociedade
No
primeiro caso, a descriminalização da conduta impõe-se com urgência.
O Código
Penal tipifica inúmeras condutas que, não obstante serem desvaliosas quando da
sua criminalização, hoje, encontram-se descontextualizadas. Pode-se citar,
neste sentido, o tipo penal de escrito ou objeto obsceno (art. 234. Fazer,
importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de
distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou
qualquer objeto obsceno. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou
multa), dentre outros.
No
concernente à segunda causa apontada, é dever do Estado convocar a atenção dos
jurisdicionados para a importância do bem, buscando, para tanto, recursos fora
do sistema punitivo. É por tal motivo que se encontram vetadas posturas
tendentes a agravar desmesuradamente a pena, querendo, com isto, demonstrar,
perante a sociedade, o valor de determinado bem. O princípio da
proporcionalidade da pena, por meio do qual esta deve corresponder à gravidade
do delito, não pode, em hipótese alguma, ceder diante de tal justificativa.
Quando se
trata de cumprir a segunda das finalidades atribuídas ao Direito penal
(proteger o indivíduo das reações sociais que o crime desencadeia), as
expectativas sociais também cumprem destacado papel, eis que tal finalidade
somente é alcançada se se consegue disseminar a ideia de que o Direito penal será
aplicado (contrapondo-se à ideia de impunidade) e se a sociedade a acatar como
justa a resposta do Direito penal (contrapondo-se à ideia de leis “fracas” ou
mesmo injustas), a fim de que não se inicie um processo de sedição popular,
bastante prejudicial à estabilização das instâncias de controle, nas quais se
inclui o Direito penal.
6. Efeitos criminógenos da criminalização
As
consequências advindas de uma dada criminalização são estudadas pela
Criminologia e, a depender dos resultados, recomenda-se uma via não
criminalizadora (estratégias de Política criminal não repressiva), já que o
efeito “colateral” acaba superando qualquer justificativa de manutenção ou
criação do tipo penal.
Este
efeito é claramente constatável na questão do aborto: com a proibição lançou-se
o assunto às relações do mercado negro, com todas as suas consequências. Com
penalizações como esta, menos se busca um efeito preventivo real e mais se
investe em um efeito simbólico, de representação de superioridade de uma moral
específica, elevada ao nível da consagração estatal.
De acordo
com EMILIO DOLCINI e GIORGIO MARINUCI, a partir da concepção da pena como
instrumento de prevenção da ofensa a bens jurídicos, o legislador italiano, tal
qual o alemão, renunciou à punição da interrupção voluntária da gravidez nos
primeiros noventa dias, fundamentando-se nas seguintes razões:
Ainda, de
acordo com DOLCINI e MARINUCI, quando, no ano de 1993, os juízes alemães
novamente foram instados a enfrentar o tema do aborto, após terem, em 1975,
manifestado-se pela criminalização desta conduta, abandonaram a visão
retribucionista que via o Direito penal como instrumento de mera reafirmação
dos valores constitucionais violados, remetendo ao legislador a difícil tarefa
de decidir se deve recorrer ou não ao direito sancionatório, a fim de dar
proteção à vida do nascituro.
Partindo
deste pressuposto, o Tribunal Constitucional alemão considerou
constitucionalmente irrepreensível a escolha legislativa ¬– completada com a
lei de 27 de Julho de 1992, após a reunificação das ‘duas Alemanhas’ – de não
punir a interrupção da gravidez efetuada pelo médico nas primeiras doze
semanas, a pedido da mulher que prove ter recorrido a um consultório. Segundo o
Tribunal, na situação conflitual em que a mulher se encontra nos primeiros
meses de gravidez, a ameaça da pena ‘pouco serve’, enquanto ‘é mais útil ajudar
a mulher com meios jurídicos preventivos’ – consulta individualizada, ajuda
econômica e social etc. – ‘a fim de que possa assumir a sua responsabilidade
para com o concebido.’
Torna-se mais
sensato, prosseguindo o raciocínio, que se recorra a especiais medidas de
proteção do nascituro.
É de
harmonia com a consideração devida à mulher em estado de gravidez que o Estado
procure conseguir que ela assuma os seus deveres de mãe por meio, não já de uma
generalizada ameaça de pena, mas antes de uma consulta individual, de um apelo
à sua responsabilidade pela vida pré-natal, de auxílios econômicos e ajudas
sociais.
Vê-se,
pelo conteúdo desta decisão, que o Tribunal buscou, utilizando-se de meios que
entendeu mais eficazes, dimensionar a proteção do nascituro, bem jurídico que,
indubitavelmente, merece tutela penal.
FIGUEIREDO
DIAS e COSTA ANDRADE, manifestando-se sobre o assunto, não põem qualquer dúvida
de que o aborto deve ser descriminalizado:
pelo teor
específico da interação dos diferentes intervenientes; pelo teor elevadíssimo
das cifras negras e pelo grau de seleção e desigualdade que eles traduzem; pela
comprovada ineficácia preventiva da lei incriminatória; pelas condições
degradantes e riscos do aborto clandestino. Bem podendo, em síntese,
concluir-se que a lei incriminatória, para além de funcionar como guarda
noturno da boa consciência de alguns, acaba por redundar num indesejável
desserviço aos valores fundamentais da própria vida humana.
Nestes
casos, havendo interesse social de repressão, “deve-se recorrer a outros
mecanismos de prevenção e controle que não a cirurgia penal, que se revela
inevitavelmente, a par de inútil, porque incapaz de dissuadir tais
comportamentos, criminógena mesmo, haja vista que produz disfunções sociais
gravíssimas.”
De acordo
com JOAQUIM CUELLO CONTRERAS, “uma das razões que levaram à despenalização
parcial do aborto foi que o número tão considerável de abortos que se
praticavam na Espanha (cifrados em uma média de 300.000 ao ano) demonstrava que
a norma penal que o proibia não era eficaz.”
Inúmeras
outras situações poderiam ser trazidas para ilustrar a afirmação de que muitas
vezes a solução pode (ou deve), perfeitamente, ser encontrada (ou buscada) fora
do âmbito penal.
Sanções
de ordem econômica impostas pela administração, por exemplo, muitas vezes
possuem mais eficácia do que aquelas que limitem a liberdade, principalmente
porque as menores exigências de garantias que decorrem da utilização da via
administrativa, quando comparada à judicial, incrementam a certeza, pelo
cidadão, de que ela venha a se efetivar. “Com efeito, admitindo-se que a função
preventiva geral de uma sanção depende principalmente de sua severidade e de
sua crença, resulta que as sanções impostas pela administração podem compensar
sua menor severidade com sua maior certeza.”
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