Posted by Chrystiano Angelo
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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Quanto mais tenho a
certeza de que juízes decidem politicamente, mais me preocupo com isso. Se esse
é um problema (há quem duvide disso), devemos enfrentá-lo com seriedade.
Entretanto, no Brasil, permanentemente, confundimos aquilo que é apenas a
expressão do que desejamos (no caso, que o magistrado decida com base na lei)
com aquilo que de fato acontece (no caso, que o magistrado é humano e, não
raramente, decide com base em fatores extralegais). É certo que se deva fazer
algo sobre isso, pois, como tenho insistido neste espaço, juízes são pagos para
aplicar o Direito democraticamente criado pelos representantes do povo, e não
as suas preferências pessoais. Mas, tomar a ilusão de nossos sonhos pela
realidade dos fatos, historicamente, tem se revelado o maior mal de que padecem
aqueles que, guiados pelas melhores intenções, se lançam à tarefa de
transformar o mundo. Na alegre e inteligente conclusão de Woody Allen, a
realidade pode ser dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom
filé.
Para ser justo, nem
sempre se pode atribuir ao comportamento dos magistrados o seu eventual desvio
do que estritamente dispõe a regra de direito. Com efeito, como há muito
demonstrou John Searle, em qualquer discurso (ato de fala), também nos textos
legais, podemos encontrar uma distância entre o discurso direto e o discurso
indireto. Dizendo de forma mais simples, aliás muito simplificada, também no
direito não podemos recusar a possibilidade de um texto afirmar mais do que
aquilo que expressa a sua literalidade[1]. Nos atos de fala indiretos, o
emissor expressa algo, mas querendo dizer outra coisa. No exemplo eloqüente de
J. Searle, quando alguém diz “o senhor está pisando no meu pé”, na maior parte
das vezes, o indivíduo não quer apenas fazer uma assertiva do que está
acontecendo (discurso direto), mas quer dizer principalmente outra coisa
(discurso indireto). No caso, o emissor não quer apenas dizer “você está
pisando no meu pé”(ato de fala direto), mas, principalmente, quer dizer algo
não diretamente dito: saía de cima do meu pé, por favor (ato de fala
indireto)[2].
Assim, muitas
vezes, o magistrado tangencia ou não aplica, em sentido estrito, o que a lei
dispõe textualmente por problemas estruturais do próprio texto ou do sistema
legal que tem de aplicar (motivos alheios à sua própria vontade), como é o caso
da existência de lacunas, ou da existência de contradições, ou ainda da
ausência (inexistência) de univocidade do texto ou, pior, do sistema legal
(como são os atos de fala indiretos). Entretanto, se esses problemas existem, é
fato que existem também problemas que podem ser imputados não ao texto legal,
mas à maneira muito própria dos magistrados se comportarem. Assim, o artigo de
hoje volta-se à discussão daquilo que podemos designar como “o modo próprio de
pensar e de agir dos magistrados”.
Inteiramente a
propósito, em livro inevitável para aqueles que se dedicam a refletir sobre a
realidade da atuação dos magistrados num Estado constitucional, Richard Posner,
ao questionar-se sobre “como os juízes pensam” (e esse é o exato título da
obra: How judges think), chega à conclusão de que os juízes, especialmente os
que atuam em instâncias recursais (appellate judges), freqüentemente atuam com
liberdade e poder discricionário (discretion), distanciando-se do direito posto
e revelando-se verdadeiros “legisladores ocasionais” (occasional
legislators)[3].
Na verdade, a
leitura (muito agradável) do livro amarra o leitor, do início ao fim, a uma
aberta ironia: a de que os juízes são permanentemente “legisladores
ocasionais”. Segundo o autor, ele mesmo um magistrado com assento em Tribunal
Federal como eu, não há dúvida de que juízes decidem politicamente, mas não
“politicamente” de modo partidário, e sim “politicamente” ao modo de quem,
amiúde, aplica o direito para satisfazer, em boa maior parte das vezes
inconscientemente, sua orientação ideológica e seus próprios valores e
preconceitos (preconceptions)[4].
Na verdade, o
livro, ao buscar explicar o comportamento do magistrado quando decide os casos
dispostos à sua consideração, acaba reservando uma surpresa a cada página.
Ainda que não concorde de forma integral com as suas conclusões (o autor, no
meu sentir e segundo a visão de alguns críticos, tem momentos de inaceitável
reducionismo teórico), o fato é que, no geral, o livro nos oferece uma visão
bastante convincente do que realmente pensam e fazem os juízes. De qualquer
forma, como investigação não existente em nosso País, o livro, de autoria dos
maiores teóricos e magistrados da atualidade, já seria obrigatório aos
brasileiros ainda que na condição de necessária advertência.
Em primeiro lugar,
o que constitui um verdadeiro truísmo nas considerações do autor, é
indiscutível que juízes decidem politicamente (para além do rule of law). As
razões para que o magistrado assim proceda têm múltiplos fatores e motivações,
sobre os quais Posner, de forma didática, sugere nove teorias explicativas: (1)
quanto à postura ou atitude pessoal do magistrado (attitudinal), (2) de fundo
estratégico estratégia, (3) de razões sociológicas, (4) de causas psicológicas,
(5) de fundo econômico, (6) de estrutura organizacional, (7) razões
pragmáticas, (8) de motivação fenomenológica e, claro, (9) também em alguma
medida em razão de algum legalismo.
Sob o rótulo de
teoria comportamental ou quanto às atitudes do juiz (attitudinal), Posner busca
explicar o fato de que juízes tendem a decidir politicamente, em detrimento do
direito, em razão de suas preferências pessoais, ou seja, eles trariam para o
interior dos casos que têm que julgar as suaspreferências políticas[5].
Bem próxima à
teoria comportamental, estaria a teoria estratégica (strategic theory), que
explicaria o comportamento dos magistrados pelo fato de eles, ao decidirem ou
votarem num tribunal, preferirem aquelas decisões que mais se ajustam aos seus
objetivos. Segundo essa teoria, estrategicamente, mas de forma contraditória,
mesmo um magistrado mais legalista ou conservador, por exemplo, pode
perfeitamente ser levado a votar afastando-se do que dele seria esperado, tudo
para atender aos seus valores, objetivos ou visão de mundo[6].
A teoria
sociológica é uma extensão ou aplicação da teoria do comportamento combinada
com a teoria estratégica. Em síntese, ela busca explicar o comportamento dos
juízes com foco na dinâmica de pequenos grupos (muito comum a tribunais, como
as turmas e as seções), retirando-se daí a conclusão de que a composição –
especialmente, ideológica - dos órgãos dos tribunais determinará, em grande
medida, o resultado de seus julgamentos.
Assim, nos exemplos
do autor, colhidos não só de sua própria experiência, mas da prática de outros
tribunais, uma turma composta de juízes indicados por presidentes republicanos
e democratas irá, de regra, decidir de forma diversa de uma turma composta
completamente por juízes indicados, por exemplo, apenas por presidentes
republicanos (como se sabe, nos Estados Unidos, juízes federais de todos os
níveis são nomeados ou indicados pelos Presidentes da República). Da mesma
forma, um caso sobre discriminação sexual, muito provavelmente, será decidido
de forma diferente, conforme essa decisão seja tomada por um órgão do tribunal
que tenha na sua composição uma mulher, ou seja apenas formado por homens[7].
Muitas são as
tentativas de explicar essas curiosas conseqüências que tem a diversidade na
composição dos tribunais para o resultado de suas decisões. Um das mais
conhecidas refere a conclusão de que um órgão com uma composição diversa de
outro órgão do tribunal tende a decidir de forma diferente pelo simples fato de
que, no órgão (turma ou seção, por exemplo) que tenha assento um magistrado com
perfil ideológico diferente dos demais, serão trazidos pontos de vista que
teriam escapado àqueles magistrados que não têm o mesmo perfil ideológico, ou
formação.
Contudo, a mais
surpreendente explicação é sugerida pelo próprio Posner, ao afirmar que o
resultado diverso em razão da composição diferenciada de um órgão de um
tribunal pode dar-se pelo fenômeno que ele designa de “aversão ao dissenso”. Em
breves palavras: havendo discordância entre dois magistrados, um deles (às
vezes ambos), especialmente em casos que dificilmente terão importância como
precedente jurisprudencial, pode abrir mão do seu ponto de vista, do que
eventualmente lhe parecia o mais correto, para acolher o voto de um terceiro
julgador dissidente, com a esperança de, consciente ou inconscientemente (e
aqui a explicação surpreendente), no futuro, obter, em casos que para ele se
revelem de forte significado, o mesmo tratamento. Em síntese, como explica
Posner, como o julgamento em colegiado é uma empresa coletiva, os juízes que
compõem órgãos de tribunais têm verdadeira ojeriza ao dissenso[8].
A teoria
sociológica deve ser complementada, por um lado, pela teoria psicológica e, por
outro, pelateoria econômica.
A teoria
psicológica centra a sua atenção nos influxos inconscientes que conformam o
comportamento humano. O afazer judicial, como sabemos, vai se transformando
cada vez mais num espaço de incerteza e imprevisibilidade. No Brasil se
aproxima, perigosamente, do paroxismo. Em síntese, em decisões judiciais não
seria correto desconsiderar eventuais paixões e outros aspectos inconscientes
que, inelutavelmente, conformam todo e qualquer afazer humano.
Já a teoria
econômica, de forma quase oposta à teoria psicológica, toma o magistrado como
um ser racional, interessado em maximizar – para si mesmo – a utilidade de seu
trabalho. Entre os elementos que, racionalmente, terão importância nas decisões
dos magistrados - como qualquer ser humano que age racionalmente e do ponto de
vista econômico - se encontraria a sua preocupação em maximizar o seu tempo de
trabalho de ordem a ter melhor eficácia no que tange aos seguintes elementos:
seu próprio laser, o poder, a sua remuneração (money income), prestígio e
reputação, auto-estima, estimulo para o trabalho e outras satisfações que todas
as pessoas mantêm com o seu trabalho[9].
Por exemplo, na
ilustrada e desapaixonada visão de R. Posner, a preocupação do magistrado com
seu próprio tempo livre para o laser pode explicar por que alguns magistrados
dão especial ênfase em doutrinas jurídicas que levam a extinção dos casos sem
necessidade de julgamento (como seria difícil trazer para a nossa realidade os
exemplos por ele referidos, além da renúncia - waiver, poderíamos dizer que, no
Brasil, deveríamos pensar na especial preocupação judicial com possibilidade de
um caso se encerrar com juízos de decadência, prescrição ou sanções que
resultem em perda de direito).
Além disso, Posner
lembra ainda de casos que parecem freqüentes na experiência de seu País, mas
não são nossos desconhecidos, em que os magistrados, mais preocupados com seu
próprio tempo e com a organização de seu trabalho, são levados a transferir
(delegar) em demasia para os seus assessores (clerks) as suas atribuições, ou
ainda a situação do magistrado que, racionalmente, num juízo de
custo/benefício, pode ser levado a forçar as partes para a efetivação de
acordos que evitem a necessidade de um julgamento final para a causa (o que é
bastante diferente da elogiável buscaconsensual de conciliação a que se devem
dedicar os tribunais)[10].
A teoria
organizacional terá em vista os fatores que explicam a decisão do magistrado em
consideração à estrutura e à organização da qual ele faz parte. Assim, para dar
um exemplo, não obstante o magistrado tenha como garantia a sua independência,
cria-se na organização judicial uma estrutura baseada no precedente com vistas
a evitar que o juiz, com sua independência, se afaste em demasia da organização
da qual ele faz parte. Cria-se um custo para que o magistrado tangencie ou
confronte os precedentes das cortes superiores (por exemplo, explicará o
próprio Posner, conquanto o juiz possa desconsiderar os precedentes das cortes de
apelação, se ele assim proceder, haverá um custo pessoal, por exemplo, quando
essa corte for considerar a eventual promoção do magistrado)[11].
Por sua vez,
segundo o pragmatismo (teoria pragmática), Posner afirma que, para
compreendermos o resultado das decisões judiciais, teremos que considerar o
fato de que juízes, muitas vezes, estão mais atentos, segundo um raciocínio
utilitário, às conseqüências de sua decisão do que propriamente a um puro
raciocínio jurídico que vincularia as conclusões de seu pensamento às premissas
existentes e tomadas no caso concreto[12].
A teoria
fenomenológica, por sua vez, é uma ponte da teoria pragmática para teoria
legalista. Ela estaria atenta à imagem que o magistrado constrói de si mesmo.
Com isso Posner é da opinião de que o magistrado pragmático será mais honesto
do que o magistrado que se afirma legalista. O pragmático, segundo Posner,
admite que toma em consideração outros aspectos (como as conseqüências de suas
decisões) e não apenas a pura expressão da lei, enquanto o legalista se
enganaria ao acreditar que apenas aplica a lei ao caso concreto (the rule of
law)[13].
O livro, em resumo,
não obstante seus momentos criticáveis, como é uma certa prevalência do modelo
pragmático de magistrado, em detrimento do que ele designa como legalista (uma
coisa é conceber que o magistrado aja em conformidade com seus interesses e em
detrimento da lei, outra é achar que isso é correto e inevitável), é uma obra
capital para quem busca compreender o comportamento dos magistrados.
Eu concluo a coluna
de hoje com as palavras iniciais de Richard Posner em seu maravilhoso
livro[14]: “Ivan Karamazov disse que se Deus não existe (então) tudo é
permitido, e os juristas tradicionais, igualmente, dizem que se o legalismo
(alguma forma de vinculação dos juízes ao direito estrito[15]) não existe
(então) tudo é permitido aos juízes – Muito cuidado! Legalismo não existe, e
nem tudo é permitido.” Contudo, alerta o autor, como o âmbito de vinculação do
juiz ao Direito (que ele chama de legalismo) encolhe cada vez mais, chegando ao
estado que vemos hoje, limitado aos casos de rotina, cresce cada vez mais (eu
diria, de forma preocupante) o espaço do que é permitido aos juízes.
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[1] John R. Searle. Speech acts: an essay in the philosophy
of language. Cambridge University Press,
1999. 203 p. Mais especificamente, John R. Searle. Expressão e Significado:
estudo da teoria dos atos de fala. SP: Martins Fontes, 2002, 293 p.
[2] John R. Searle.
Expressão e Significado: estudo da teoria dos atos de fala. SP: Martins Fontes,
2002, introdução e p. 47 e seguintes. Ver também John R. Searle. Speech acts: an essay
in the philosophy of language. Cambridge University Press, 1999., p. 22 e
seguintes.
[3] Richard Posner. How judges think. Cambridge,
Massachusetts, London: Harvard University Press, 2008, p. 5 e, especialmente,
78 e seguintes.
[4] Richard Posner. How judges think. Cambridge,
Massachusetts, London: Harvard University Press, 2008, p. 369.
[5] Richard Posner, op. cit., p. 19/20.
[6] Richard Posner, op. cit., p. 30.
[7] Richard Posner, op. cit., p. 31.
[8] Richard Posner, op. cit., p. 32.
[9] Richard Posner, op. cit., p. 30/31.
[10] Richard Posner, op. cit., p. 31.
[11] Richard Posner, op. cit., p. 39.
[12] Richard Posner, op. cit., p. 40.
[13] Richard Posner, op. cit., p. 41.
[14] Richard Posner, op. cit., p. 1.
[15] Acréscimo meu.
Fonte: http://brunocazevedo.blogspot.com.br/
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