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O direito mora na filosofia

Posted by Chrystiano Angelo On terça-feira, 25 de setembro de 2012 0 comentários

O direito mora na filosofia



Em tempos de um Judiciário guiado pelas estatísticas e pelos enunciados com pretensão de universalidade (leia-se súmulas vinculantes e precedentes), em prejuízo da hermenêutica constitucional; em tempos de um Judiciário transformado em mais uma corporação no grande mercado, que exigem padronização e rápida proteção de seus interesses, tem se tornado lugar-comum dizer que o direito não necessita de “perfumarias” (leia-se, filosofia, principalmente, e outros saberes correlatos). Vige a máxima “na teoria é uma coisa, mas na prática é outra”. O Judiciário precisaria, apenas, ser mais rápido, fazer caminhar mais celeremente os processos e de maneira uniforme, como se isso fosse a solução da propalada crise. Mas uma crise que tem fatores externos ao Judiciário, acima de tudo (clique aqui e veja que o juiz brasileiro é um dos que mais julga no mundo!). E um número representativo de magistrados, culpados por uma pretensa e irreal ineficiência, afogados de processos e crentes na tábua de salvação estatística, perde-se na cotidianidade. Aliás, desde as bancas dos concursos não se quer reflexão, mas flexão, apenas... Atende-se, afinal, à lógica do sistema: pensar não dá certo porque traz a diferença. E a diferença incomoda o mercado. E nada mais revelador do que o discurso de uniformização contra “independentismos” da magistratura de primeiro grau e de tribunais “inferiores”.
Dize-me o que (não) lês que te direi como decides. E em se tratando de um magistrado, a formação humanística é crucial para determinar seus horizontes de compreensão. E ela se dá pela aquisição de saberes para além de textos legais, súmulas e precedentes. E de manuais que dizem o óbvio, de pretensos doutrinadores que não passam de caudatários da jurisprudência dominante.
A pré-compreensão de qualquer fato ou coisa é formada pela visão prévia, pela posição prévia e pela concepção prévia de si próprio, do mundo e do fenômeno que se enxerga. Essa tríade de visões determina, embora que nem percebamos, como se dá a compreensão de qualquer fenômeno. No caso de um jurista, quais os sentidos que ele consegue revelar do sistema jurídico como um todo; do texto legal; dos fatos do caso concreto. Essa tríade dá o “lugar de fala” de quem enuncia qualquer discurso. A pré-compreensão, assim, condiciona a expressão do compreendido, a interpretação, com a geração da norma do caso concreto – o desvelamento do fenômeno, o enunciado da decisão.
O jurista que se preza não despreza a filosofia. E não se trata de filosofia do direito, mas no direito (Streck). O direito mora na filosofia, porque pressupõe qualquer fenômeno jurídico, ainda que não a evoquemos ou notemos. Ela que o possibilita. Quem trabalha com uma ciência social aplicada como o direito (isto é, teoria e prática), mas sem um background filosófico, perde sua autonomia; não é capaz de problematizar, de buscar o entendimento do mundo. Um jurista que imagina que o direito prescinde da filosofia [como se isso fosse possível – porque não leu sobre ideologia (Marx), sobre existência inautêntica (Heidegger), sobre violência simbólica (Bourdieu) ou sobre razão instrumental (Horkheimer), só para começar] não se localiza nem no tempo e nem no espaço. Vira massa de manobra das forças hegemônicas. Passa de sujeito a assujeitado (Foucault). Vira “operador” jurídico, apertador de botões de um teclado de computador. Enfim, desumaniza-se e, consequentemente, desumaniza o que faz.
O jurista que transcende a mera técnica está em outro patamar. É ator jurídico. Compreende o mundo porque, primordialmente, compreendeu a si mesmo; compreendeu seu papel enquanto ser-no-mundo e, enquanto profissional: o de decidir crítica e autenticamente, referenciado pela normatividade constitucional por ele desvelada e não pelo que os outros dizem dela. Em se tratando de saberes humanos, não existem autoridades; no máximo, especialistas. O argumento é que deve prosperar e não quem o propala. A independência funcional começa de dentro para fora.
Assim, o que lemos (ou não) nos (im)possibilita. Quem só lê os “manuais jurídicos do mais-do-mesmo”, voltados a explicitar o senso comum teórico, não amplia os próprios horizontes. Um jurista manualizado e perdido na práxis despreza que a Constituição é um fenômeno que, antes de ser jurídico, é filosófico e sociológico, explicado na teoria geral do direito e na ciência política. Como se refletir (ou não) sobre um fenômeno jurídico qualquer, imaginando-o como algo separado da filosofia? Como pensar o direito apartado da realidade fática, social, e das relações de poder que o subjazem, tão bem problematizadas pela teoria política? Pois uma deficiente formação humanística gera a baixa constitucionalidade, há anos denunciada por Lenio Streck, Luís Alberto Warat e tantos outros jusfilósofos.
É ilusão pensar que quando um juiz decide sobre uma questão envolvendo um direito fundamental está lidando apenas com o fenômeno jurídico como se fosse uma categoria estanque, apartada dos demais saberes, principalmente da filosofia e da sociologia.
Quando, por exemplo, um juiz acredita na busca da verdade real, ainda reverberada pelos manuais e alguns pretensos doutrinadores, precisa saber que: a) que a pretensa “verdade real” não resiste a cinco minutos de psicanálise, filosofia hermenêutica ou hermenêutica filosófica; b) historicamente, assume uma postura típica da inquisição; c) que na teoria geral do Estado tal postura não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, que no âmbito do processo penal se caracteriza pela gestão da prova pelas parte e não pelo juiz; d) que tal postura inquisitória, na teoria constitucional, não possui qualquer sustentáculo normativo; e) que, sob uma ótica da teoria dos direitos fundamentais, não compete a um terceiro imparcial qualquer interesse em relação a causa, mesmo de encontrar a pretensa “verdade”; f) que somente no paradigma do Estado Polícia o juiz assume ares de combatente da criminalidade, como ensina a filosofia política.
Quando nos deparamos, por exemplo, com qualquer questão envolvendo a dignidade da pessoa humana, a encaramos sob um ponto de vista kantiano ou hegeliano (ainda que nem conheçamos sequer razoavelmente tais pensadores).
Quando lidamos, por exemplo, com manifestações populares contra alguma medida do governo ou de empresas que venha a ferir direitos sociais, nossos juízos prévios sobre a evolução histórica (e social) e o conteúdo material (filosófico) de tais direitos em um Estado como o Brasil, repleto de (so)negações, importa muito na hora de decidir, pois nesse plano se desvela  a compreensão (ou não) da Constituição como Estatuto Político e o direito como transformador da realidade social (Estado Democrático de Direito). Isso termina sendo determinante entre reconhecer um direito social ou criminalizar tais movimentos. Entre compreender nossas históricas desigualdades sociais ou fomentá-las por meio do discurso de (manter a) ordem. Entre ser um magistrado emancipador que reconhece direitos ou o que exerce mera violência simbólica (ainda que não perceba isso).
Quem não gosta de filosofia [filos (amizade/amor) sophia (saber)] no direito vive na ignorância. O problema é quando essa mesma pessoa está para decidir um processo que pode mudar o rumo de uma ou de muitas vidas. Antes do Judiciário precisar caminhar mais rápido, necessita saber para onde se está indo.

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