O ciúme nasce com o ser humano. Irmãos
lutam entre si pelas atenções dos pais, crianças têm apego possessivo pelos
brinquedos. No entanto, além das tendências inatas, padrões culturais
centenários insuflam o sentimento de posse, de domínio do outro nas relações
afetivas e sexuais. Ao contrário do que disse Vinícius de Moraes, o ciúme não é
o perfume do amor, e pode ser sua desgraça. Impossível estabelecer uma relação
gratificante quando as perseguições e as cobranças são a tônica da vida a dois.
A exclusividade entre parceiros não deveria merecer tanta prioridade. A
supervalorização da fidelidade é um erro, é a maior causa de infelicidade
conjugal. Não que se deva ignorar a importância de um parceiro fiel e dedicado,
mas a obsessão pela exclusividade pode tornar a vida um inferno e levar à
prática de violência doméstica. O crime passional nada mais é do que o
homicídio praticado por ciúme.
O que caracteriza a passionalidade é o
motivo do crime. Nosso Código Penal qualifica o homicídio, aumentando-lhe a
pena, quando praticado por motivo torpe. E o ódio gerado pelo ciúme, a sede de
vingança que atormenta a pessoa que foi trocada por outra configuram a torpeza.
O móvel do crime é uma combinação de egoísmo, de amor próprio ferido, de
instinto sexual e, acima de tudo, de uma compreensão deformada da justiça, pois
o homicida acha que está no seu “direito”. A pena prevista no Código Penal é de
12 a 30 anos de reclusão. Quanto mais estreita a mentalidade do agente, maior
sua insegurança, sua necessidade de dominar e de se autoafirmar às custas da
companheira ou companheiro. O homicídio entre casais é uma aberração que
durante séculos foi avalizada pela sociedade, principalmente quando o autor era
homem e a vítima, apontada como traidora, era mulher. Foi assim que morreram
Ângela Diniz, Eliane de Gramont, Sandra Gomide e muitas outras.
O caso Matsunaga, ocorrido recentemente
em São Paulo, configura uma exceção à regra do crime passional. Na esmagadora
maioria das vezes, quem mata é o homem; a mulher é a vítima do marido e da
sociedade patriarcal. A dimensão da tragédia transcende o casal. No geral,há
filhos que ficam órfãos, pais e mães que definham no desespero de perdas
irreparáveis, futuras gerações que são obrigadas a suportar o estigma do
assassinato em família. Está na hora de corrigir padrões de comportamento que
contrariam a natureza humana e por isso não são respeitados. A natureza não
ditou a fidelidade eterna. A exclusividade entre parceiros existe, mas em geral
é temporária. Além disso, o ciúme é um mal a ser extirpado, não incentivado
como se costuma fazer. Não se pode cultivar sentimento de posse e propriedade
sobre um ser humano. Leon Rabinoviz, em 1933, externava sua perplexidade diante
do crime passional observando ser “curioso sentimento o que nos leva a destruir
o objeto de nossa paixão! Mas não devemos extasiar-nos perante o fato; é,
antes, preferível deplorá-lo”. O instinto de destruição é exatamente o instinto
de posse exacerbado, porque a propriedade completa compreende, também, o poder
de matar.
O ciúme incomoda, fere, humilha quem o
sente. No dizer de Roland Barthes, “como ciumento sofro quatro vezes: porque
sou ciumento, porque me reprovo em sê-lo, porque temo que meu ciúme magoe o
outro, porque me deixo dominar por uma banalidade. Sofro por ser excluído, por
ser agressivo, por ser louco e por ser comum”. O sueco Stieg Larsson,autor da
trilogia Millennium, criou em sua obra personagens envolvidos em tramas
intrincadas e fascinantes. Extremamente moderno e arrojado, ele construiu
relações amorosas baseadas na liberdade individual, mostrando as variadas
possibilidades de ser feliz no amor sem as amarras da exclusividade e da
mentira. Se conseguirmos lidar melhor com nosso egoísmo, o fim do amor será
sempre resolvido nas Varas da Família, e não no Tribunal do Júri.
Por Luiza Nagib
Eluf, Procuradora de Justiça em São Paulo.
Fonte: Blog Promotor de Justiça
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