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Prescrição penal virtual no Supremo Tribunal Federal: uma questão de princípios

Posted by Chrystiano Angelo On quarta-feira, 4 de janeiro de 2012 0 comentários
                                                                     
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Conceito e fundamento da prescrição virtual. 3. Inadmissibilidade da prescrição virtual nos Tribunais Superiores. 4. Falta de fundamentação jurídica e incoerência lógica dentro da sistemática processual penal dos dias atuais. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO
Em se tratando de causas extintivas de punibilidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre foi firme e iterativa ao não admitir a chamada prescrição penal virtual, antecipada, ou “em perspectiva”, que nada mais é, em singelas palavras, do que o reconhecimento antecipado (geralmente na fase do inquérito policial) da prescrição retroativa; tendo-se em vista a provável pena a ser posteriormente aplicada ao acusado no caso concreto.
Isto porque de acordo com o STF, essa tal modalidade de prescrição, ao contrário da prescrição retroativa, não encontra previsão legal no Código Penal, violando, por conseguinte, além do princípio da legalidade, diversos princípios constitucionais, tais como: presunção de inocência, individualização da pena e devido processo legal.
Saliente-se, que com o advento da Lei 12.234/2010 a prescrição retroativa “foi cortada pela metade”, o mesmo acontecendo, por conseguinte, com a prescrição virtual. Em síntese, não ocorreu a sua extinção, mas esta subespécie de prescrição já não pode “ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa” (art.110, § 1º, parte final, do Código Penal). Todavia, ela pode ser contada a partir do recebimento da denúncia ou da queixa.
2. CONCEITO E FUNDAMENTO DA PRESCRIÇÃO VIRTUAL
No que tange às causas extintivas da punibiidade, o fator tempo ganhou destaque quando da análise da prescrição, decadência e perempção, cada qual tendo o momento próprio de verificação, sendo que “a prescrição é a detentora de maior complexidade, importância e a de maior aplicação”, na visão de Fábio Guedes de Paula MACHADO[1].
Nesse meio, a prescrição virtual nada mais é que uma modalidade de prescrição da pretensão punitiva (“prescrição da ação”) na qual o magistrado simula, tendo por base os aspectos objetivos e subjetivos do crime, a pior sanção possível para o réu se condenado fosse ao final da instrução criminal e, sendo o caso, vislumbra o esgotamento do prazo prescricional já no momento da instauração da ação penal, ou mesmo em seu curso.
Desse modo, tal espécie de prescrição encontra seu principal fundamento na falta de interesse de agir, que acarreta a ausência de justa causa para o início ou prosseguimento da ação penal. Como se vê, a prescrição virtual afeta o interesse de agir do Estado no caso sub judice e nada tem a ver com a extinção da punibilidade. Logo, é matéria processual penal e não penal.
3. INADMISSIBILIDADE DA PRESCRIÇÃO VIRTUAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A prescrição virtual não é admitida nos Tribunais Superiores (principalmente após a edição da Súmula 438 pela Terceira Seção do STJ, em 28.04.2010), mas é aplicada em primeira instância. A recente Súmula conta com uma redação categórica:
“É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da  pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.
Nessa mesma senda, é válido destacar, ainda, o entendimento do Min. RICARDO LEWANDOWSKI, aduzindo que “conforme a remansosa jurisprudência desta Corte, não se admite a chamada prescrição antecipada por ausência de previsão legal” (HC 94.338/PR, j. em 31.03.2009).
Destarte, de acordo com a jurisprudência do STJ e do Supremo, já foram alegadas violações aos seguintes postulados constitucionais: legalidade, individualização da pena, presunção da inocência e devido processo legal.
4. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA E INCOERÊNCIA LÓGICA DENTRO DA SISTEMÁTICA PROCESSUALÍSTICA PENAL PÁTRIA
Em que pese tal posicionamento do Supremo Tribunal Federal, não se pode negar que a prescrição penal antecipada, em “perspectiva”, projetada ou virtual estava sendo expressamente prevista pelo art. 37 do Anteprojeto da Reforma do Código de Processo Penal, in fine:
Compete ao Ministério Público determinar o arquivamento do inquérito policial, seja por insuficiência de elementos de convicção ou por outras razões de direito, seja, ainda, com fundamento na provável superveniência de prescrição que torne inviável a aplicação da lei penal no caso concreto, tendo em vista as circunstâncias objetivas e subjetivas que orientarão a fixação da pena (destacamos).
Todavia, tal dispositivo foi extirpado da reforma processual e não entrou em vigor. E qual o motivo, então, para essa espécie de prescrição ser agora prevista? Simplesmente, não existem motivos substanciais para a sua proibição na sistemática processual penal pátria, estando ela plenamente de acordo com os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência.
A propósito, Aury LOPES JR.[2] afirma com propriedade a necessidade de o processo penal ser orientado e substancialmente democratizado pela Constituição cidadã, não podendo ser tolerado “(…) um processo penal autoritário e típico de um Estado-Policial, pois o processo deve adequar-se à Constituição e não o contrário”.
Aliás, é de se ressaltar que a declaração de extinção da punibilidade pela ocorrência de prescrição, por ser matéria de ordem pública, se dá em qualquer momento do procedimento, independente de sentença de mérito. Quantos não são os casos em que se reconhece a prescrição em abstrato, extinguindo, consequentemente, a punibilidade do agente, sem que haja juízo de mérito?
Deste modo, percebe-se icto oculi que não procede o simplório argumento de que eventual aplicação da prescrição virtual transgrediria a garantia constitucional da presunção de inocência. Isto porque a decisão que reconhece a prescrição antecipada apenas trabalha com a possibilidade de o indiciado ou réu vir a ser condenado. Ora, tal possibilidade efetivamente existe e decorre efetivamente dos indícios de autoria exigidos para o oferecimento e recebimento da peça acusatória.
Na esteira de TOURINHO FILHO[3], nada impede que o Juiz, levando em conta as circunstâncias do caso concreto e entendendo que se for proferir sentença condenatória haverá a prescrição retroativa, consulte a Defesa sobre se haverá, ou não, interesse no prosseguimento do feito.
Ora, a prescrição antecipada nada mais é do que o reconhecimento da própria prescrição retroativa (que tem previsão legal), antes da sentença, com base na pena a que o réu seria condenado, evitando assim, o desperdício de tempo na apuração de coisa nenhuma, pois já se sabe, antecipadamente, que o resultado será a extinção da punibilidade.
Destarte, a suposta ofensa ao princípio da legalidade é rebatida com a invocação do art. 395, inciso III, da Lei Instrumental Penal[4], recentemente alterado pela Lei nº 11.719/08, e que permite a rejeição da denúncia quando faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.
A propósito, ensina Carlos MAXIMILIANO[5] que “deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”. Prefere-se, pois, na visão do jurista, (…) a exegese de que resulte eficiente a providência legal ao válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, e este, juridicamente nulo”.
Já para Ricardo Pieri NUNES, citado por Afonso JAWSNICKER[6], não procede a assertiva de que o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa não pode ser acolhida à míngua de previsão legal em seu abono, já que dentro do atual contexto da evolução da ciência jurídica, identifica-se “um nítido esgotamento do clássico modelo positivista, como início de uma fase onde desponta a normatização de postulados” (grifo nosso).
No limite da crise da dogmática, aliás, Luís Roberto BARROSO[7] aduz que a estrutura do saber jurídico-penal padece de certa patologia, e preleciona que “(…) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior” (destacamos).
Isto é, de acordo com o autor, deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.
De fato, a constatação do reconhecimento da prescrição penal deve se dar caso a caso, aproximando-se o juiz da sociedade, deixando-se penetrar de concepções que não obstacularizem o desenvolvimento social e jurídico do Direito Penal enquanto sistema aberto que deve ser, extraindo a idéia nuclear do Direito Penal moderno que é a de “buscar ao caso concreto uma solução mais justa, ainda que tenha que posicionar a dogmática em segundo plano”, conforme preleciona Fábio Guedes de Paula MACHADO[8].
Sob outro ângulo, também não se pode aceitar a tese de que a prescrição antecipada infringe o princípio do devido processo legal. Segundo JAWSNICKER[9], a razão é simples. Tal postulado diz que ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Pois bem, a decisão que reconhece a prescrição antecipada não priva o indiciado ou acusado de coisa alguma. Pelo contrário, o livra de um processo sem justa causa!
Não se pode esquecer que o garantismo penal, teoria desenvolvida a partir das garantias inerentes ao cidadão enquanto reflexo do princípio constitucional da dignidade humana – e não como cessão de liberdade ou direito dados pelo Estado ao cidadão -, e as novas estruturas de processo serviram para fundamentar o que entendemos ser o devido processo penal, agora muito mais preocupado em limitar a atuação do Estado na persecução criminal.
Por outras palavras, não se vê utilidade, nem ao menos necessidade, de mover todo um aparato estatal (Promotor de Justiça, Magistrado, Defensoria Pública, etc.) sabendo que, ao final, a pena não será aplicada em razão da ocorrência da prescrição. Em tais hipóteses, a manutenção da persecutio criminis in judictio se mostra um non sense, em perfeito descompasso com os modernos princípios de direito processual (eficiência, economia, instrumentalidade, etc.).
Nesse lume, é oportuno deixar vincado que, seguindo uma tendência internacional de redução do Direito subjetivo do Estado, novas teorias que se converteram em causas de afastamento da potestade surgiram no interior da teoria do delito; a se ver pelo princípio da insignificância, da teoria da imputação objetiva, ou das causas supralegais de exclusão da ilicitude e da culpabilidade.
Por sua vez, quanto ao princípio da obrigatoriedade da ação, argumenta-se que o réu estaria sujeito a um grande prejuízo, uma vez que não teria a possibilidade de ser absolvido da acusação que lhe imputam. Ora, como bem aponta TOURINHO FILHO[10], tal justificativa não prospera, pois a própria prescrição pela pena in abstracto – que conta com a previsão legal – impede o prosseguimento do curso processual e, via de consequência, o direito de o réu apelar para comprovar a sua inocência.
5. CONCLUSÃO
Na sistemática processual penal dos dias atuais, não tem lógica, ilude as garantias da liberdade e frauda a finalidade do processo penal constitucional o atual posicionamento do STF de não reconhecer uma espécie de prescrição que, inclusive, já estava sendo prevista no próprio Anteprojeto do Código Processual Penal.
Trata-se, a bem da verdade, de uma jurisprudência atrelada a um conservadorismo estéril. Não se pode tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado Policial, pois é o Código de Processo Penal que deve adequar-se à Constituição e não o contrário. O Homem não pode ser convolado em mero objeto do processo, sob pena de se ferir a dignidade humana, núcleo axiológico da Lex Fundamentalis.
Os argumentos alegados pelo Supremo – contrários ao reconhecimento da prescrição virtual -, são inconsistentes e falaciosos, uma vez que, partindo-se da premissa que deve o processo penal ser entendido como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu, jamais se poderia admitir que argumentos de lógica formal pudessem subjugar o direito à liberdade do acusado – até por força do princípio processual penal do favor libertatis.
Para se evitar impunidades, basta trabalhar com a teoria da “pior das hipóteses” quando existirem causas de aumento ou de diminuição da pena. O problema – se é que existe -, é muito simples de ser contornado: basta que, antes da decretação da prescrição, o investigado ou réu seja intimado para que informe se concorda com a providência. Caso sua anuência não seja colhida, o processo segue em frente.
Ora, é preciso acordar para a realidade; mesmo sem uma previsão legal o magistrado pode suspender um processo quando entender que a pena não terá resultado prático no caso concreto. O Direito já não pode ser confundido com um mero esquema formal de leis, como sonhou o austríaco Hans Kelsen.
Ignorar o suplício que é um processo penal sem justa causa e se fiar no simplório argumento de que o réu tem direito a provar sua inocência, beira à hipocrisia. De fato, quantos não são os casos em que se reconhece a prescrição em abstrato, extinguindo, consequentemente, a punibilidade do agente, sem que haja juízo de mérito?

[1] MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: prescrição funcionalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.201.
[2] LOPES JR., AURY. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.12.
[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31 ed. rev. e atual. Saraiva, São Paulo, 2009, v.1., p.595.
[4]  Art. 395.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando: (…) III – faltar justa causa para o exercício da ação penal. (destacamos)
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 7.ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961, p.210, n.179.
[6] JAWSNICKER, Afonso. Prescrição penal antecipada, 2009, p.114.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.70)
[8] MACHADO, Fábio Guedes de Paula, Op. cit., p.199.
[9] JAWSNICKER, Afonso. Op. cit., p.140.
[10] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p.597.
6. BIBLIOGRAFIA
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumun Juris, 2003.
MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: prescrição funcionalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 7.ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961.
JAWSNICKER, Afonso. Prescrição penal antecipada. Editora: Juruá2009.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31 ed. rev. e atual. Saraiva, São Paulo, 2009, v.1.

Júlio Medeiros é advogado criminalista, professor de Direito Penal na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).  Secretário da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT. Página pessoal do autor:www.criminalistanato.blogspot.com. Twitter: julio_advogado. Fale diretamente com o autor em: juliodemedeiros@hotmail.com                                                     





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