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Um “GATO” legal

Posted by Chrystiano Angelo On quinta-feira, 11 de agosto de 2011 0 comentários
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça legalizou o “gato”. Por “gato” se entende o furto de água ou de energia elétrica, que são desviadas mediante gambiarras ou ligações clandestinas.
Em 28/jun, ao julgar o HC 197.601/RJ, o STJ reverteu decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (logo onde…), que manteve ação penal contra um sujeito que teria dado um jeitinho para economizar uns trocados. A relatora foi a ministra Maria Thereza de Assis Moura. Segundo ela, “O objeto da impetração cinge-se à verificação de existência de justa causa para a ação penal, porquanto o prejuízo oriundo de suposto furto de água teria sido ressarcido à companhia de abastecimento. Busca-se, aqui, o reconhecimento de raciocínio analógico entre a extinção da punibilidade promovida nos crimes fiscais e previdenciários.
A tese do réu é a seguinte. Se, nos crimes tributários, o sonegador que paga o que deve ao Fisco fica livre da persecução penal, o ladrão que devolve o que furtou, também deveria ficar. Eis a ementa da decisão:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO DE ÁGUA VITIMANDO A COMPANHIA DE ABASTECIMENTO. RESSARCIMENTO DO PREJUÍZO ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. COLORIDO MERAMENTE CIVIL DOS FATOS. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. VIABILIDADE. 1. O Direito Penal deve ser encarado de acordo com a principiologia constitucional. Dentre os princípios constitucionais implícitos figura o da subsidiariedade, por meio do qual a intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais. In casu, tendo-se apurado, em verdade, apenas um ilícito de colorido meramente contratual, relativamente à distribuição da água, com o equacionamento da quaestio no plano civil, não se justifica a persecução penal. 2. Ordem concedida para trancar a ação penal n. 0268968-47.2010.8.19.0001, da 36.ª Vara Criminal da Comarca da Capitaldo Rio de Janeiro.
Com isto, sem declarar a inconstitucionalidade do §3º do art. 155 do Código Penal, que tipifica o crime de “gato”, nessa decisão a 6ª Turma do STJ riscou do mapa a punição penal para os furtos de água e de energia elétrica:
Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.
Segundo o art. 97 da Constituição Federal, os órgãos fracionários dos tribunais não podem reconhecer a inconstitucionalidade incidental de uma lei. Esta matéria é reservada ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial. É a chamada “cláusula de reserva de plenário“. Em outras palavras, a 6ª Turma do STJ não pode deixar de aplicar a lei penal, isto é, a lex populi aprovada pelo Congresso, alegando que o direito penal é subsidiário ao direito civil. O que houve ali foi a negativa de aplicação da lei federal sem declaração da inconstitucionalidade do art. 155, §3°, do CP.
 A Súmula Vinculante 10 proíbe expressamente esta prática judicial: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tibunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta a sua incidência no todo ou em parte”.
Em suma, pelo menos para este tipo de crime, parece que foi revogado o mandamento “não furtarás”. E nem me digam que o direito penal é uma violência e isto e aquilo, porque para o crime de furto simples cabe suspensão condicional do processo, cabe pena alternativa, cabe sursis, cabe regime aberto. Na prática, não há prisão, nem precisa haver.
A decisão provoca um série de interrogações. Como fica o interesse da sociedade? Os consumidores honestos suportarão os prejuízos que os “gatos” causam às companhias concessionárias de energia elétrica e do serviço de água, muitas delas públicas (como a CEDAE do Rio e a EMBASA da Bahia). Naturalmente, as empresas embutirão nas tarifas o valor do prejuízo. Ademais, gambiarras elétricas provocam riscos de incêndio, e incêndios matam. Portanto, é evidente a lesividade social do “gato”, especialmente dos “gatos” cometidos por quem não é pobre de marré deci. Muita gente pensa que só pessoas humildes praticam “gatos”. Na verdade, há “gatões gordos” nas classes A e B.
Resta saber se a 6ª Turma só liberou os “bichanos”, os gatinhos menores. O réu em questão fez um “gato” de R$1.156,22, no ano de 2008, o que é pouco, mas de grão em grão… Além disso, o réu pagou o prejuízo assim que o pegaram com a patinha na torneira. Era um “gatinho” bonzinho. Por que então não aplicaram o princípio da insignificância em seu favor? Seria correto e tal solução levaria à atipicidade material da conduta. Ocorre que a tese da insignificância vem sendo limitada pelo STF (HC 108.117/RS, rel. Ricardo Lewandowski; e HC 100.986/PR, rel. Marco Aurélio) e isto pode ter levado a 6ª Turma do STJ, reconhecidamente liberal, a trilhar outro caminho despenalizador.
Aplicaremos essa benesse da subsidiaridade da lei penal diante da lei civil a todos os furtos? Por questão de isonomia, que também “está de acordo com a principiologia constitucional”, deveríamos. Afinal, em qualquer furto, basta resolver o problema no plano civil e estamos conversados. Furtou, senhor ladrão? Devolva o bem que estará tudo certo. E se o réu não tiver como pagar pela coisa furtada ou não quiser fazê-lo? Problema da vítima. Ela que se vire…
Também não entendi o motivo pelo qual não foi usado o artigo 16 do Código Penal, que trata do arrependimento posterior. A regra aplica-se como uma luva ao caso em questão:
Art. 16. Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.
Não vale mais esse artigo? Está (ou estava) em vigor desde 1984. Segundo tal regra, mesmo que o réu repare o furto, a lei prevê a aplicação de pena, mas reduzida de 1/3 a 2/3. Contudo, o STJ tampouco o levou em conta.
Resta também saber se legalizaremos o “gatonet“, aquele feito para obter sinal de TV a cabo. A Constituição garante o direito à informação e ninguém pode viver sem a novela das 8 e sem ver a final de A Fazenda.
De quebra poderíamos também legalizar o plágio e a violação de direitos autorais. Os partidários do “liberou geral” vão autorizar a cópia integral de seus livros sem pedir punição dos plagiadores pelo art. 184 do CP? Ora, a Constituição também garante o direito à educação e o artigo Control-C + Control-V da lei brasileira assegura a dignidade da pessoa humana estudante.
Se uma das turmas do STJ decidiu que “gato” não é crime, que é só uma “infração contratual”, o que fica é o precedente. E um precedente é também um exemplo para a sociedade! É como dizer: “Façam o mesmo, concidadãos!”. Que pessoa desonesta haverá de discordar?
E viva a Lei de Gerson, de autoria do maior jurista brasileiro de todos os tempos! Agora esta “lei” tem uma nova interpretação: uns economizam; todos pagam. Isto não é “legal”.

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