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Só é Preso quem Quer - Crua Realidade

Posted by Chrystiano Angelo On terça-feira, 23 de agosto de 2011 0 comentários

Só é Preso quem Quer - Crua Realidade

Entrevista com Marcelo Cunha editor do blog O Radar da impunidade brasileira à Revista art. 5º da Polícia Federal



Link da revista (http://www.revistaartigo5.org.br/) 

Artigo 5º - “Só é preso quem quer! - Impunidade e Ineficiência do Sistema Criminal Brasileiro”. Independentemente de ser uma grande obra, o título é uma provocação, um desabafo ou crua realidade? 
Acho que o título acaba tendo uma dose de provocação, uma dose de desabafo e uma dose de crua realidade. Depois de trabalhar muitos anos com a prática do Direito Criminal, percebi que, estatisticamente, além do sistema funcionar mal, apenas funciona minimamente para um certo grupo de “criminosos”. Ademais, sempre notei que existe um descompasso muito grande entre o que clama a população e o que nos “ensinam” nossos “sábios” juristas, como se o jurista fosse mais capacitado para entender quais os passos deve tomar nossa sociedade. 
Logo, resolvi escrever uma obra, como um desabafo de um Promotor criminal cansado com a impunidade e os absurdos que acontecem no dia-a-dia, para despir a retórica jurídica e expor a todos, independentemente de conhecimento jurídico, os descalabros tão belamente justificados pelos nossos Tribunais. Essa “crua realidade”, das entranhas do não funcionamento de nosso sistema, mostrada transparentemente no livro, precisava vir como uma provocação em um título claramente paradoxal, afinal de contas: quem quer ser preso? Além disso, como podemos falar que o Brasil é o país campeão mundial da impunidade se existem, atualmente, aproximadamente 500 mil presos, inclusive com despautérios de excesso de punição sempre sendo veiculados pela mídia?

Numa entrevista o senhor disse que o título surgiu de uma brincadeira. Como se deu isso?
Ao explicar aos meus alunos do curso de Direito da PUC-MG que o entendimento dos Tribunais, de tão leniente, acaba por gerar uma situação insólita, inimaginável nos próprios países que nos exportaram a base do entendimento garantista (ex. Itália, EUA, Alemanha, etc.), sempre afirmo que, no Brasil, a pessoa só fica presa se deixar de cumprir alguns requisitos: em primeiro lugar, ela deve fugir do flagrante. Diga-se de passagem, que, com a entrada em vigor da Lei 12.403, acho que poderemos abandonar esse primeiro ponto. Além disso, o criminoso que tem residência e emprego fixos não ficará preso. Por fim, não deixando o caso cair na mídia nacional, a impunidade estará garantida. 
Essa brincadeira, que possui um fundo de verdade estatística, implica em que, caso o criminoso tenha emprego e residência fixas, não seja preso em flagrante e seu caso não caia na mídia nacional, ele poderá praticar qualquer crime no Brasil, desde que esteja disposto a pagar uma bela quantia por uma defesa jurídica proativa. Ou seja: cada brasileiro pode praticar pelo menos um crime em sua vida e ficar totalmente impune! 
Dois pontos, entretanto, merecem destaque. Primeiramente, quando digo qualquer crime, o espectro é realmente assustador: desde homicídios aos campeões da impunidade – os crimes do colarinho branco. Nesses últimos, o grau de impunidade é tão assustador que desmotiva os agentes do Estado que atuam nessa frente. Noutro ponto, gostaria também de frisar que minhas críticas, quando digo que um bom advogado consegue emperrar o processo criminal por vários anos, dirigem-se ao sistema, e não ao advogado, que deve agir na melhor defesa de seu cliente de acordo com o sistema em vigor. 

A tradição política brasileira é de que cadeia foi feita para os três “p”. Se eles um desses três “p” quiser pode também não ser preso? 
Apesar da impunidade no Brasil, comparado com os outros países, ser imensa, sempre que há punição, ela será no “p” de “pobre”. Explico: a impunidade no Brasil é ainda muito grande. Assim, de cada 1000 homicídios, aproximadamente 80 se convertem em denúncias ministeriais. Desses, o nível de condenação é de aproximadamente 2% do total. Dos condenados, menos de 0,5% do total chegam a cumprir a pena. Como se explica, então, nossa robusta população carcerária? O que ocorre é que punimos quase que exclusivamente os crimes de tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio. Logo, a regra social é: se você é pobre e pratica certos crimes, como o homicídio, a direção embriagada, o homicídio culposo no trânsito, a lesão corporal, a ameaça, o desacato, entre outros, sua chance de contar com a impunidade ínsita ao sistema é ainda muito grande. Se o pobre, porém, pratica os crimes mais focados pelo sistema como o tráfico, o roubo, o latrocínio, a extorsão mediante seqüestro, a chance cai um pouco, mas, todavia, continua substancial. Lado outro, se o infrator é rico, a chance estatística de ser preso – e continuar preso – chega a ser estatisticamente nula. 

No contexto da impunidade que comentários especiais o senhor reservaria aos criminosos do colarinho branco, os crimes de lesa-pátria. 
No meu entender, o sistema criminal atual deveria se focar em dois grandes grupos: os crimes violentos e os crimes do colarinho branco. Atualmente, há o foco tão somente na seara dos crimes violentos, o que acaba por unicamente punir a pobreza. O Direito Penal contribuiria à expansão da democracia e da cidadania se trouxesse o pressuposto de que, para o combate à miséria – como causa de criminalidade –, é necessário o investimento na erradicação dos bolsões de miséria. Entretanto, se a cada mil reais tributados, apenas cem chegam aos cofres públicos e desses cem reais, apenas um real se transforma efetivamente em investimento social, como conseguiremos, algum dia, ampliar a cidadania? 

O senhor também já falou que leis de conteúdo explicitamente discriminatório são poucas, mas existem. Isso é simples força de expressão? 
Os exemplos de leis de conteúdo discriminatório são raros, como o absurdo do foro privilegiado, a contravenção da vadiagem – que diz claramente que não a comete quem tem recursos para se dedicar ao ócio – ou a prisão especial para quem possui curso superior. O maior problema, entretanto, é conseguir enxergar a discriminação oculta em leis que, aparentemente, são igualitárias. A lei 12.403/11, que trata das medidas cautelares e prisões provisórias, é um grande exemplo disso. Aparentemente essa lei se dirige a todos. Entretanto, com sua entrada em vigor, os casos de crimes do colarinho branco passaram a ter as prisões provisórias quase que impossibilitadas. Ademais, quando se traz para o texto penal o inadmissível entendimento do STF de que o recurso especial e extraordinário não permitem a execução da condenação já confirmada pelos Tribunais – ou seja, concede efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário –, tal traz um recado claro aos criminosos que respondem em liberdade: recorram e posterguem o processo o máximo possível, afinal, mesmo sendo os Tribunais Superiores exclusivamente destinados ao debate de teses jurídicas – e não de fatos – o mandado de prisão só será expedido ao fim da última possível e imaginável manifestação do último órgão do último tribunal. Essa norma (aparentemente isonômica) acaba beneficiando apenas àqueles que têm recursos suficientes para interpor, entre outros, por exemplo, embargos declaratórios e agravos regimentais em cascata – além, é claro, dos despachos e encontros diretamente realizados com Ministros e sustentações orais nas cortes, somente acessíveis aos escritórios de advocacia mais gabaritados e, evidentemente, mais caros. 

Nesse contexto de anomalias, como fica tudo isso à luz do princípio da igualdade previsto na Constituição? 
O princípio da igualdade só tem sentido na realidade. Na prática, entretanto, as pessoas vêem diariamente que alguns são mais iguais que os outros. Acho que cabe aos agentes públicos responsáveis por implementar a isonomia na vida real dos cidadãos – como os Juízes, Promotores, Policiais, etc. – chamar para si a responsabilidade por uma interpretação mais comprometida com o país que vivemos. 

No contexto de impunidade e de desigualdade o senhor tem falado não apenas de discriminação em termos de lei, mas também na forma de interpretação das leis. Dá para explicitar melhor essa idéia?
A falácia do hipergarantismo brasileiro, como se fosse uma teoria para proteger o cidadão frente aos abusos do Estado, deve ser atacada imediatamente. A teoria do garantismo, apesar de ter sua fundamentação nas idéias das revoluções burguesas do séc. XVIII e na racionalidade italiana de Ferrajoli, foi importada por grupos de juristas brasileiros e modificada de forma a beneficiar certos interesses. Tanto é assim que as interpretações exageradas brasileiras são consideradas ridículas nos países de onde trouxemos essas idéias.
Um pequeno exemplo disso que posso apontar é que, nos outros países, nem se cogita que o “direito de não produzir prova contra si mesmo” (nemo tentetur se detegere) possa chegar a níveis estratosféricos e irresponsáveis, como na discussão se o réu deve ou não participar de um reconhecimento, reconstituição de crime, fornecer material genético ou mesmo deixar de soprar o bafômetro. 

Existe uma realidade gritante, que nos leva a repetir uma mesma pergunta aos nossos entrevistados, com base num rol de medidas como quebra de sigilo, redução do tempo de monitoramente de telefones, restrição ao uso de algemas, às prisões temporárias, além do desaparelhamento dos setores competentes. Querem travar ou parar as polícias e o judiciário? 
Acredito que não há meias respostas para essa pergunta. Querem travar a atividade de investigação e instrução em certas áreas sem perder a “roupagem” de que vivemos numa democracia. Afinal de contas, quais os crimes são investigados quando há uma interceptação telefônica, acesso a dados bancários e fiscais, análise contábil e de informática, etc.? Esses “criminosos” são efetivamente mais iguais que os outros e, sempre, escondem-se atrás de uma retórica de que não pretendem impedir as investigações, e sim preservar a todos – e não apenas a eles mesmos – as garantias fundamentais que a “evolução da humanidade” levou séculos para consolidar. 

Ainda dentro desse contexto de travamento da atividade persecutória, instrutória como fator de impunidade, o senhor tem citado a interpretação extremamente garantista na produção de provas. Dá para explicar melhor isso? 
Atualmente, toda prova produzida pode ser considerada, de uma forma ou de outra, ilícita. Mesmo investigações com autorização judicial (o que nem deveria ser necessário) são posteriormente desconstituídas, em sede de remédios imediatos como o HC – e não do processo em si – aos argumentos mais esdrúxulos possíveis. Logo, em virtude das “inovações” jurisprudenciais, não sabemos mais como usar a delação premiada, a notícia anônima, a extensão de provas de uma investigação autorizada em outra, as agências investigativas congêneres, o acesso do investigado às investigações, a participação do Ministério Público, a escuta telefônica, a escuta ambiental, entre outros. Tudo isso gera a total insegurança e o desestímulo dos responsáveis por essa seara, os quais, quase sempre, vêem suas árduas horas de trabalho – muitas vezes com sacrifício pessoal – caírem por terra, com uma simples “canetada” descompromissada com a realidade dos fatos e do país. 

Esta não é, portanto, uma discussão meramente jurídica. Que interlocutores deveríamos trazer para o debate de forma a vislumbrar alguma saída? 

Creio que devemos consolidar uma união efetiva entre os agentes que realmente desejam e se vêem como parte da solução em oposição àqueles que são parte do problema. Dessa forma, uma interlocução e uma parceria maior entre a Polícia e o Ministério Público são fundamentais. Além disso, setores do judiciário e mesmo da seara política se mostram favoráveis e preocupados com uma atuação criminal responsável e comprometida com os objetivos maiores de nosso Estado. Por fim, o diálogo com a sociedade, principalmente as associações do terceiro setor que se debruçam nessa questão, deveriam ser mobilizadas para essa cruzada. 

Creio, então, que o caminho seja a consolidação de um “núcleo duro” de instituições e pessoas que efetivamente tomam uma posição contrária ao hipergarantismo retórico que se consolida como justificante à impunidade direcionada. Acredito que o percurso para isso seja a tomada de posição formalizada e explícita da Polícia e do Ministério Público nessa linha, deixando de lado pequenas discordâncias que existem entre os órgãos. Após a clara união dos objetivos dessas instituições outros articuladores sociais se unirão à causa. 

Para cada boca de fumo existe alguém mais poderoso e sofisticado que sem sujar as mãos consegue financiar o crime. Esta fala é sua. Qual a extensão dessa assertiva? 
A extensão é total. Não existe crime organizado sem financiamento de grandes quantias e ligações com o Estado institucionalizado. Além disso, devemos abandonar a idéia de que o crime organizado é só aquele realizado nas favelas e nos presídios com a ligação direta com o tráfico de drogas. As máfias das licitações, das obras públicas, dos cargos públicos, do tráfico de influência, das vendas de decisões, etc. também fazem parte do conceito de crime organizado e são tão ou mais perniciosos que o tráfico de drogas das periferias e da marginalidade. O interessante é que, para combatermos esse “outro” crime organizado, os instrumentos de investigação necessitam ser mais precisos e técnicos, exigindo material e pessoal mais capacitado. Além disso, necessitam de interpretações jurisprudenciais compatíveis com a importância da função. 

Esse quadro já foi conceituado pelo senhor como teratológico, cuja lógica latente e fundante seria preciso encontrar. Alguma luz no fim do túnel? É possível explicitar melhor essa sua constatação? 
A lógica, conforme exponho em meu livro “Só é preso quem quer”, e que é jocosamente demonstrada na parábola quase que infantil da “Revolução dos Bichos” de George Orwell, é que devemos abandonar a ingênua noção de que o Direito é uma “ciência neutra” composta de postulados positivados que permitem ao cidadão utilizar-se do bem-estar geral em troca de uma parcela de sua soberania, cedida ao Estado. Na verdade, grupos de pessoas reais, com interesses reais, convivem em sociedade visando à prevalência de seus valores sem a destruição completa do sistema – o que, ao final, geraria mais prejuízos a esses mesmos grupos. Dessa forma, como disse antes, devemos efetivamente assumir nossa função como Policiais e Promotores de Justiça: a de, através do sistema criminal, tornar a sociedade brasileira mais democrática e cidadã. 
A constituição de um grupo real nosso, unido nesse ideal claramente identificável, seria um primeiro ponto na estruturação de uma corrente que possa fazer frente ao momento atual. Apenas como ilustração, cito o caso do IBCCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Esse instituto, apesar de aparentemente se dedicar ao estudo das ciências criminais – do ponto de vista da “Ciência”, acabou por levar os interesses daqueles que se aproveitam do hipergarantismo brasileiro a muitas searas. 
Nesse sentido, atualmente, os grandes encontros e congressos de Direito Penal contam com palestras apenas daqueles que seguem a cartilha do garantismo irresponsável. Na senda acadêmica, a impregnação dessas idéias é tamanha que dificilmente um estudante de mestrado ou doutorado consegue defender impunemente uma tese contrária ao hipergarantismo. Eu mesmo já compareci a uma defesa de tese em que a candidata defendia a redução da maioridade penal para dezesseis anos. Poucas vezes tive o desprazer de presenciar um tão claro linchamento acadêmico como o que ocorreu naquele dia – e olhe que eu nem defendo essa tese – mas o patrulhamento ideológico garantista ficou evidente. Num aspecto mais importante, é notória a participação e influência do IBCCrim na facilitação da nomeação de advogados e mesmo Juízes e membros do MP aos Tribunais Superiores. Nessa trilha, um garantista “de carteirinha”, seja ele advogado, Juiz ou Promotor, tem mais chance de ser nomeado ao STJ e aos outros Tribunais. 
Sem entrar na questão da legitimidade dos interesses defendidos pelo IBCCrim – já que, numa democracia, cada grupo legitimamente defende seus interesses – o que ocorre, e é preocupante, é que não temos a mínima coesão ideológica de grupo para nos opor a essa vertente. Nossas lideranças estão mais preocupadas com questões de vencimentos e aparelhamento das instituições. Frise-se que essas preocupações são importantíssimas, mas se não nos preocuparmos e também cuidarmos para desenvolvermos nosso papel fim, em pouco tempo estaremos novamente na mesma situação em que estávamos antes da Constituição de 1988 – a da mera existência justificada pelo funcionamento formal em uma “suposta” democracia. 

O senhor concorda que se tudo isso sobrevive talvez tenha como motivo conveniente a uma determinada estrutura, quem sabe pessoas, grupo. O senhor já conseguiu diagnosticar a quem possa interessar e por que somos impotentes para enfrentar essa realidade? 
Creio que as pessoas mais interessadas em que o hipergarantismo continue a diminuir as funções da polícia e do MP são justamente aquelas que criam as normas e muitas daquelas que as interpretam. Agora, temos que reconhecer nossa parcela de culpa e responsabilidade por não conseguir efetivar uma corrente contrária que se oponha aos absurdos que estão ocorrendo. O caminho da criação desse “núcleo duro” contra a impunidade direcionada só pode ser logrado através do diálogo e da flexibilização e diminuição de nossas diferenças. Devemos ter a coragem de expor a que viemos, quem somos e o que defendemos, enxergando-nos como irmãos na busca de um ideal. Só se aproveita de nossas divergências o inimigo oculto que se esconde atrás da retórica hipergarantista.
 

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