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O “campeão de tiros” e a legítima defesa de terceiro

Posted by Chrystiano Angelo On quarta-feira, 24 de agosto de 2011 0 comentários

O “campeão de tiros” e a legítima defesa de terceiro


JÚLIO MEDEIROS
Triste e recente episódio envolvendo um jovem campeão regional de tiros na cidade de Cuiabá/MT deu ensejo a uma interessante e pretensiosa discussão: a atuação da Autoridade Policial durante o inquérito policial inquisitório e, especialmente, no ato de lavratura do flagrante de um fato típico, porém lícito ou não culpável.

Em suma, conforme foi noticiado pela mídia e ratificado pelo esportista, ele reagiu a um assalto em sua residência com nítido propósito de proteger sua família, sendo que os disparos efetuados causaram a morte imediata de um criminoso, deixando o outro gravemente ferido. O jovem foi indiciado por homicídio consumado e tentativa de homicídio.

Criminalmente, é preciso vincar que as providências tomadas de imediato pelo Delegado estão conforme o art. 310 do Código de Processo Penal. É verdade que tal dispositivo refere-se unicamente ao juiz, e não dá, em tese, maior liberalidade à Autoridade Policial. Contudo, deve ser interpretado à luz da Constituição Federal, pois, como se sabe, a nossa Lei Instrumental Penal foi editada sob atmosfera fascista possuindo índole nitidamente autoritarista em determinadas situações.

Por sua vez, o art. 23, do Código Penal, disciplina as excludentes de ilicitude e dispõe expressamente em seu inciso II que "não há crime quando o agente pratica o fato: em legítima defesa". Assim, em mera análise dos requisitos legais objetivos e subjetivos, percebe-se nitidamente que o jovem atuou, no mínimo, em legítima defesa de terceiro em perigo iminente. Isso parece ser inquestionável.

A grande questão, porém, é que a condição mais importante dessa excludente (ou justificante) é o elemento subjetivo, chamado "animus" de defesa. Em suma, quem efetua os disparos (ou pratica a agressão) deve ter perfeita noção de que está agindo dessa forma para se proteger, ou a terceiros. Se, nada obstante a situação, a intenção do autor dos disparos fosse pura e simplesmente "matar", responderia sim pelo homicídio.

Todavia, no caso em comento deve ser levada em conta a seguinte manifestação do autor dos disparos: "Eu não tinha intenção de matar, e sim de tirar a arma da mão deles, de parar a ação. Minha única defesa era não deixar atirar na minha família". Aliás, pelas próprias circunstâncias do fato e vida profissional do estudante poder-se-ia chegar a essa simples constatação e, ademais, excluir a tipificação pelo excesso doloso ou culposo previsto pelo parágrafo único, parte final, do aludido art. 23 do Código Penal.

Mas o esportista ainda bem argumentou: "Você acha que eu gostaria de sacar uma arma e atirar contra duas pessoas? De matá-las? Alguém, em sã consciência, acha isso legal? É um bem que eu gostaria de angariar pra minha vida? Não, com certeza não".

Posto isto, de acordo com a tradicional teoria do delito (crime é fato típico e ilícito e, para alguns, culpável) é possível chegar a singelas conclusões.

Primeiro: os disparos efetuados pelo estudante configuraram fato típico de acordo com a letra fria da lei: homicídio doloso consumado em tipicidade imediata por força do caput do art. 121 do Código Penal ("Matar alguém") e a tentativa por força da norma de subordinação mediata constante do art. 14, inciso II do Código Penal.

Segundo, a conduta do autor dos disparos não é ilícita, pois o próprio art.23 do Código Penal assinala que "não há crime" quando o agente atua em qualquer daquelas hipóteses. Além do que, na oportunidade, o meio utilizado pelo acadêmico foi o necessário a repelir uma injusta provocação por parte dos assaltantes sendo utilizado, ainda, de modo moderado e no fito de proteger terceiros de um perigo atual!

Terceiro, o fato não é culpável, haja vista que no caso está presente a inexigibilidade de conduta diversa, uma excludente (dirimente) da culpabilidade. Em outras palavras, não é razoável exigir-se, do autor dos disparos e naquela oportunidade, uma conduta distinta, uma vez que a lei não é feita para loucos ou heróis, e sim para homens comuns, falíveis.

Ademais, conforme a propalada teoria da imputação objetiva, o fato nem ao menos seria típico, pois quem atua no sentido da proteção do bem jurídico (no caso a vida) não pode ser responsabilizado pelo resultado causado. Apesar de criticada, é bom vincar que essa teoria muitas vezes evita situações injustas; basta ser corretamente aplicada pelo profissional.

Ora, quem tem de ser absolvido não deve sequer ser processado. De fato, ninguém ignora o suplício que é um processo criminal sem justa causa, tanto é que nossos tribunais admitem a impetração de "habeas corpus" no fito de trancar ação penal quando for caso de evidente atipicidade de conduta.

No caso analisado, em síntese, não seria lícito ao delegado conceder liberdade provisória ao indiciado, uma vez que os crimes são punidos com reclusão. Todavia, ele poderia simplesmente interromper a prisão em flagrante em seu terceiro momento: lavratura do auto (após a captura e condução coercitiva do acusado), evitando-se assim o recolhimento ao cárcere.

Insta assinalar, ainda, que não há usurpação da função jurisdicional, haja vista que a manifestação da Autoridade Policial se faz de forma precária, devendo apenas especificar porque há ou não o crime, porque existe ou não a excludente. Se o Magistrado entender que não havia qualquer respaldo para soltar o indiciado, a prisão será plenamente factível, em face de seu caráter "rebus sic stantibus".

Isso, sim, é devido processo penal.

JÚLIO MEDEIROS  é advogado criminalista em Cuiabá.
juliodemedeiros@hotmail.com
www.criminalistanato.blogspot.com

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