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Os "presos especiais" e a igualdade perante a lei

Posted by Chrystiano Angelo On terça-feira, 3 de maio de 2011 0 comentários
Sob o título "Prisão Especial ou Preso Especial", o artigo a seguir é de autoria de Paulo Calmon Nogueira da Gama, Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional.

Embora tenha voltado à baila a questão da prisão especial na corrente reforma ao Código de Processo Penal, os deputados federais decidiram não mexer no instituto. Seguindo a máxima de que nada é tão ruim que não possa piorar, a opção conservadora da Câmara dos Deputados acabou por evitar um desastre maior, já que o texto que veio do Senado Federal, ao contrário do que se andou falando, longe de extinguir a prisão especial, na prática aprofundava seu potencial discriminatório. De fato, ao invés de reservar o privilégio a determinadas castas (como vinha fazendo e continuará a fazer a lei), o texto senatorial delegava à autoridade policial ou judicial o arbítrio para indicar quais os cidadãos que fariam jus no caso concreto ao cárcere diferenciado.

Mas será que em nossa fase de maturidade constitucional e democrática é legítimo que continue a existir, tal como é ainda hoje, o instituto da prisão especial?

A expressão
todos são iguais perante a lei (artigo 5º da Constituição do Brasil de 1988), traduz enunciado basilar a qualquer regime que se pretenda democrático, mesmo não sendo autorrealizável no mundo fático. A notória incoincidência entre o dever-ser (ditado pela ordem constitucional) e o ser (encontrado na vida real) indica que o tratamento isonômico dispensado aos cidadãos depende mais da atividade do Estado-executivo e do Estado-judiciário do que da igualdade formal a ser promovida pela função legislativa.

Em boa medida, contudo, a lei também pode ser fonte de desigualdade substancial. Para fins de efetiva igualdade, não basta que se tome a expressão
igualdade perante a lei apenas na acepção limitada à equalização no trato concreto dos interesses dos cidadãos sob a regência da lei. Mais que isso: para a igualdade de fato, é essencial que a própria norma legal seja produzida com a ideia de isonomia introjetada em seu material genético e em seus objetivos subjacentes. Ou seja, além da igualdade perante a lei, é importante que se leve em consideração a efetiva igualdade na própria lei.

O que não impede que se tenha em conta o traço da
relatividade. Havendo fatores legítimos de discriminação, um ordenamento jurídico de qualidade deve procurar induzir o equilíbrio entre os desiguais, na esteira do célebre enunciado aristotélico, magistralmente difundido entre nós por Rui Barbosa, que propõe tratamento igualitário aos iguais e desigualitário aos desiguais na medida de suas desigualdades.

Lamentavelmente, em especial quanto à legislação penal, o princípio da igualdade segue sendo apenas um mito. Sobejam fatores discriminantes desarrazoados, ilegítimos e imorais, encontradiços desde a definição dos delitos e das penas, passando pela execução das prisões e medidas cautelares, chegando, enfim, ao desenrolar da execução penal e à reintegração do egresso à sociedade.

Não são de difícil detecção desvios propositais – embora pretensamente
sutis – em relação ao ideal isonômico. Sobram normas penais desigualitárias, produzidas sob justificativas apenas aparentes, e que constituem precisamente o primeiro mecanismo a selecionar os destinatários do sistema penal. Ao eleger os bens jurídicos a serem tutelados pela norma penal – e ainda a forma e a intensidade dessa tutela –, o legislador, via de regra, submete-se à lógica de dominação em suas projeções social, econômica, política e cultural do país, reproduzindo-a.

Exemplo eloquente de blindagem legal àqueles não mirados originariamente pela instância seletiva da legislação penal brasileira pode ser extraído desse instituto da prisão especial. A expressão chega às bordas do eufemismo, já que, em verdade, não se trata de
prisão especial, mas sim de preso especial. É ele o integrante de uma elite em relação à qual o sistema de seleção legal entende que não pode ser submetido a uma cela comum, em mistura aos de classe subalterna, aqueles rejeitos sociais etiquetados como “bandidos” e “marginais”.  Não raro, salas bem equipadas são adaptadas para receber o preso ilustre; isso quando ele não segue mantido nas dependências de quartéis ou em recolhimento domiciliar. A prisão especial é praticamente uma assunção oficial de que o sistema penal não foi engenhado para atingir os membros dos diversos segmentos da elite nacional (cultural, econômica e do serviço público).

Embora a
prisão especial tenha cabimento somente na fase de investigação ou do processo, portanto antes da condenação definitiva, o instituto assume especial dimensão quando contextualizado num universo carcerário em que metade de seu contingente é formada por presos provisórios (muitas vezes, contrariando a lei, misturados aos presos condenados). Visto sob outro ângulo, significa dizer que boa parte dos atingidos pela legislação penal apenas conhecerá a prisão provisória como fundamento de segregação física.

Em relação ao encarceramento provisório, talvez a única ressalva razoável – ou único fator válido de discriminação – diga respeito à proteção da saúde e da integridade física de pessoas em especial situação de vulnerabilidade junto aos demais presos, entre elas os profissionais da persecução penal (aliás, na mesma medida da proteção especial que mereceria qualquer acusado que, por características pessoais ou tipo de crime que se vê acusado, desperte especial repulsa e risco de hostilização por parte da massa carcerária).  Mas isso não quer dizer devam essas pessoas desfrutar de acomodações qualitativamente melhores, mais confortáveis, enfim, com mais “privilégios”. Deveria significar, simplesmente, que existe a necessidade de separação dos demais presos, ou mesmo a necessidade de alocação em acomodações individuais.

A verdade é que, nos termos da lei, a custódia cautelar deveria sempre se dar em local próprio, separado dos que já cumprem penas prisionais por condenações definitivas. Iguais condições a todo e qualquer preso provisório, e não apenas àqueles distinguidos pelos
status cultural (diplomados em curso superior) ou pela força política diferenciada que sua instituição profissional amealhou junto ao legislador (profissionais liberais, políticos, religiosos, oficiais militares, professores, vigilantes, sindicalistas, pilotos e outros).

Não se trata de
nivelar por baixo e de forma simplista extirpar as prerrogativas exercitáveis pelos custodiados em determinados encarceramentos especiais. Ao contrário, deve-se exigir, com a prioridade devida, diante da principiologia constitucional e da evidente e cômoda omissão estatal, que as mesmas condições “especiais” sejam estendidas aos que se encontrem em igual situação, isto é, todos aqueles que estejam na condição de presos provisórios

Enquanto não houver o efetivo avanço legislativo sobre a matéria, resta instigar o Supremo Tribunal Federal, responsável maior pela jurisdição constitucional, a promover a equalização do sistema com base no ideal de igualdade, de modo a ajustar o foco do aparelho estatal a seu objetivo fundamental, qual seja, a construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária.
Fonte: http://blogdofred.folha.blog.uol.com.br/

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