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Garantia individual - PEC não pode transformar recurso em ação

Posted by Chrystiano Angelo On quinta-feira, 26 de maio de 2011 0 comentários
A Proposta de Emenda à Constituição 15, de 2011, de autoria do senador Ricardo Ferraço, transforma recursos ao STF e ao STJ em ações rescisórias. Trata-se de emenda tendente a abolir a garantia individual da ampla defesa, ferindo cláusula pétrea constitucional. Incide, pois e assim, na inconstitucionalidade prevista no artigo 60, parágrafo 4° da Constituição Federal.
A emenda constitucional pode muito, mas não pode tudo. O exercício do poder de reforma da Constituição pelo Congresso possui limites materiais explícitos e implícitos. Não poderia instituir a pena de morte ou o fim da propriedade individual, para ficar em dois exemplos. Também não pode transformar recursos em ações rescisórias. Isto porque o artigo 60, parágrafo 4° da Constituição veda a tramitação de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. O direito a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, encontra-se estatuído no rol de proteção do cidadão pelo artigo 5º, inciso LV, da Constituição, sendo cláusula imutável.
Pela teoria do poder constituinte[1], a constituição originária não pode ser um simulacro alterável ao sabor das maiorias eventuais dos parlamentos. Veda-se a ruptura de seus fundamentos e estrutura, como proposto pela PEC 15/2011.
O Congresso Nacional, ao exercer o poder constituinte reformador, não possui o poder de alterar a essência das coisas. Não é possível ao Congresso transformar azul em amarelo ou água em óleo. Também não pode transformar recurso em ação. A ação rescisória possui características próprias, não se confundindo com o recurso. Naquela pressupõe a desconstituição de um julgado definitivo, em um novo processo, com o rejulgamento do litígio. Neste, tem-se o inconformismo com a decisão judicial, dentro do mesmo processo, levado a instância superior. Para Barbosa Moreira: "chama-se rescisória à ação por meio da qual se pede a desconstituição de sentença trânsita em julgado, com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada"[2]
Na ação rescisória opera a rescisão do julgado questionado (judicium rescindens) para efetuar um novo julgamento da lide (judicium rescisorium), quando demonstrado que a decisão judicial violou dispositivo legal, incorreu em erro de fato ou se fundamentou em prova falsa, dentre outras hipóteses. O autor de uma ação passaria a ser, eventualmente, o demandado em rescisória. O cidadão que deseja recorrer estaria obrigado a ingressar com uma nova ação, ferindo a liberdade de escolha que deve ser atribuída a todo brasileiro, por força constitucional.
A regulamentação da mencionada PEC 15/2011 teria que retirar da rescisória as suas características essenciais, transmudando-a em algo semelhante aos recursos. Seria como ter açúcar dentro de um vasilhame com rótulo de sal. Ter-se-ia um recurso com nome de ação. Evidenciado o artifício para tangenciar a inconstitucionalidade de impedir o acesso aos recursos, essencial a configuração da ampla defesa. Sem falar a exigência de depósito de 5% do valor da causa como pressuposto de admissibilidade da rescisória, aumentando o custo da Justiça.
Segundo a PEC 15/2011, as ações rescisórias seriam julgadas pelo STJ e STF, podendo não ocorrer a propalada  diminuição do número de ações, em substituição aos recursos, para julgamento pelas cortes superiores. Saliente-se que o STF editou as súmulas 249 e 515, asseverando que apenas possui competência para julgar as ações rescisórias contra seus julgados, diferentemente do sistema pretendido pela proposta de emenda.
Em diversas ocasiões, o STF declarou inconstitucionais normas que dificultam o exercício do direito de defesa, com os recursos que lhe são inerentes. A Súmula Vinculante 21 considerou que é inconstitucional a exigência de depósito prévio para admissibilidade de recurso.  A Súmula Vinculante 14 garantiu acesso aos advogados a autos sigilosos, em nome da defesa. A Súmula Vinculante 3 determina a ampla defesa no âmbito do TCU. Diversas outras súmulas, como as de números 708, 701 e 523, tratam da relevância da defesa. A PEC 15/2011, ao impedir ou dificultar a ampla defesa, incorre em inconstitucionalidade semelhante à que inspirou a edição das Súmulas do Supremo Tribunal Federal.
A alegada utilização dos recursos com fins protelatórios devem ser resolvidos aplicando multas severas às partes recorrentes, como previsto no projeto do novo Código de Processo Civil, aprovado pelo Senado, em tramitação na Câmara dos Deputados. Institutos como repercussão geral, súmula vinculante e julgamento de recursos repetitivos já estão sendo utilizados para diminuir o número de recursos, sem a necessidade de encerrar sua existência..
Não há comparação entre a PEC 15/2011 e a Lei da Ficha Limpa. A inelegibilidade não é punição, apenas critério de candidatura. A ausência de recurso cerceará a liberdade ou a propriedade do cidadão, importando em uma sanção. Transformar recurso em ação rescisório fere o due processo of Law em seu sentido substantivo. Levar alguém a prisão ou permitir a liberação de somas em dinheiro sem a posição dos tribunais superiores fere o princípio da presunção de inocência e a necessária segurança jurídica.
Bem equacionou a matéria o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, ao enunciar que “a proposta é inconstitucional e pior do que a idéia original de Peluso já que transforma, de fato, os recursos em ações rescisórias”. Bem fundamenta a sua posição sobre o projeto,  “agride as liberdades e os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal”.
Não há dúvidas quanto à inspiração da PEC 15/2011 na denominada PEC dos Recursos proposta pelo ministro presidente do STF. Sobre tal proposta, com razão a opinião do ministro do STF Marco Aurélio, expressada no Ofício 6/2011 – GBMA, de 3 de abril de 2011, dirigido ao colega de Corte Cezar Peluzo. Vaticinou, com propriedade, o ministro Marco Aurélio: “não pode haver tramitação de emenda constitucional que vise abolir direito individual, e os parâmetros tradicionais da coisa julgada consubstanciam direito individual. Em síntese, a coisa julgada, tal como se extrai da Constituição Federal, é cláusula pétrea. Mais do que isso, no campo criminal, mitigar a coisa julgada significa mitigar o princípio da não culpabilidade”.
O Instituto dos Advogados Brasileiros, na mesma linha, vaticinou: “É de sabença comezinha em Direito as figuras jurídicas conhecidas do ‘devido processo legal’, do ‘trânsito em julgado’, da ‘coisa julgada’ e da ‘não culpabilidade’, todas relativas ao sacrossanto direito de defesa deferido constitucionalmente a todos os litigantes em processos administrativos e, sobretudo, judiciais”.
A PEC 15/2011, ao tentar tangenciar a inconstitucionalidade presente na proposta do ministro Cezar Peluso, também incorre em flagrante agressão a cláusula pétrea da Constituição, extrapolando os limites do poder de reforma do Congresso Nacional, ao tentar alterar a essência e a natureza dos institutos jurídicos, chamando de ação rescisória o que na verdade sempre será recurso.
A celeridade deve ser implantada com respeito ao direito de defesa. A pressa é inimiga da perfeição. A rápida solução dos litígios não pode prejudicar a qualidade dos julgados e a segurança jurídica, para os quais a defesa é fundamental. A mudança cultural de todos os operadores jurídicos, a administração do judiciário de forma menos amadora, com planejamento e transparência, iriam mais colaborar para a razoável duração dos processos.
Medida salvacionista como a PEC 15/2011, sem prévia análise de impacto, não pode ser implantada, sob pena de mais tumultuar do que organizar o sistema processual brasileiro. Nenhuma solução pode ser pensada sem cumprir os balizamentos constitucionais.


Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho - cONJUR


[1] SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat) organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986.
[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos de, "Comentários ao Código de Processo Civil", 11a. ed., vol. V, Rio de Janeiro: Forense, 2003

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